Por ter recebido convidados em casa ontem à noite, a programação do Bairro do Oriente ficou um tanto ou quanto desencontrada. Antes de passar à programação de hoje, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Aproveitem bem este resto de Domingo.
I
Quando ouvimos falar de “talento”, pensamos em engenho, em arte, numa qualidade especial que nos distingue dos outros. O talento nasce com cada um, não se aprende nos livros, não se compra e raras vezes passa de pais para filhos. Alguém que é talentoso é normalmente um músico, um atleta ou um artista. O talento bebe da inspiração, e muitas vezes sem ser trabalhado e incentivado, pode acabar desperdiçado, diluído, perdido, desaproveitado. É como um diamante em bruto, que precisa de ser talhado, sintetizado e lapidado para poder adquirir a sua forma e brilho, caso contrário nunca passará do seu estado alotrópico. Quando o Chui Sai On, o nosso Chefe do Executivo, falou a semana passada na apresentação das Linhas de Acção Governativa da importância de preservar e estimular os nossos “talentos”, fico a pensar que não era bem esta palavra que queria usar. Talvez algo tenha ficado perdido na tradução, não sei. Para que floresça, o talento requer um ambiente ideal para a sua germinação, crescimento e proliferação. Num território onde os pais desencorajam os filhos a usar o seu talento para a música, para a escrita ou para as belas-artes porque são coisas que “não dão dinheiro”, está-se a arrancar o talento pela sua raíz. O pragmatismo é o herbicida do talento. Quem tem mesmo talento, vai procurar outros pastos mais verdes, onde o seu dom possa brotar, longe desta selva de cimento, e onde a criatividade não se iniba com o som do camartelo e do áspero movimento circular da betoneira. Um talento era também o nome de uma antiga medida de massa da antiga Ática, equivalente a cerca de 26 quilogramas de prata. Um talento correspondia a 6000 dracmas, ou 25,8 kg do metal precioso branco. Em Macau o talento não tem lugar, e quem manda é a pataca. Como naquela anedota do alentejano, “aqui nunca nasceu um grande homem; só nascem crianças”.
II
A tragédia que assolou as Filipinas após a passagem do tufão Haiyan apela à nossa natureza humanitária. É impossível ficar indiferente às imagens de devastação, de morte, de uma miséria que assume contornos ainda mais dramáticos nestes momentos, quando as intempérides deixam expostas as nossas fraquezas, reduzidos à condição de criatura frágil e indefesa perante esse monstro em que a natureza por vezes se transforma. Imagens que circulam pela net e pela imprensa mostram populações inteiras em prantos, famílias que perderam os que mais amavam, e que viram o muito pouco que tinham reduzido a destroços. Posto isto, ficamos com vontade de ajudar, de dar e de partilhar, nem que seja o mínimo dentro das nossas possibilidades. Não é possível reclamar de volta as vidas que a força dos ventos e das marés arrastaram com a sua fúria, e a forma mais fácil de aliviar o sofrimento daquelas gentes que como nós são feitas de carne e osso, choram, sentem, e neste momento tão sensível contam com o nosso apoio, é através da contribuição em dinheiro. Não podemos lá ir e levantar vilas e aldeias inteiras das ruínas causadas pela passagem do super-tufão, mas através de um donativo, mesmo que simbólico, podem-se tapar alguns buracos, sarar algumas feridas deixadas pelo Haiyan. Mas tanto ou mais doloroso que este drama humanitário, é saber que existe quem dele tire proveitos ilícitos, arrecadando para si parte da ajuda que devia chegar aos mais necessitados, aproveitando-se de um sistema torpe, minado pela corrupção e sem uma mão firme que coloque alguma ordem na vilanagem. Quem dá de boa vontade não gosta de se sentir enganado, e quer apenas que a sua doação chegue a quem dela realmente precisa. Foi com isto em mente que o Governo das Filipinas lançou uma página na internet para deixar saber de que forma estão a ser aplicados os donativos internacionais, de modo a elevar a transparência e sacudir um pouco essa sombra de dúvida sobre se a ajuda está realmente a ser canalizada para os sobreviventes da tragédia. Uma iniciativa pioneira em nome da transparência, que mesmo não sendo “tiro e queda” na resolução do problema, deixa-nos dormir um pouco mais descansados. O dia em que a desconfiança se sobrepôr à caridade, será o dia em que nos tornamos tão maus como o lado mais negro da natureza. O mesmo que nos trouxe o Haiyan.
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