quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XXII: a escola


A escola ainda não acabou
há sempre tanta matéria a estudar
que eu chego mesmo a ter medo
de em qualquer momento
já não ter lugar
para mais conhecimento


Jorge Palma, A Escola

Ah a escola...os amigos, o recreio, os joelhos esfolados pelos jogos da bola, pelas quedas e outras traquinices, as primeiras namoradas, as partidas, a festa que se fazia quando havia um furo. “A mãe da professora de Matemática morreu e ela não vem a semana toda? Uhuh! Yes! Yessss!”. A escola ensinou-nos muito mais do que a retórica dos professores e da matéria que vinha nos livros. Na escola aprendemos a conhecer os outros, a fazer amigos e inimigos, a acertar e a errar, e a tirar daí as respectivas conclusões. A escola ensinou-nos o que vale um dia, uma hora, um minuto, ensinou-nos a amar, a sofrer, a conhecer o meio que nos rodeia, e tudo isto enquanto cresciamos, e a dimensão do mundo variava conforme a nossa própria dimensão. Quem não aproveitou o tempo da escola para se fazer gente, perdeu uma excelente oportunidade. Num mundo ideal, éramos todos exactamente os mesmos de quando deixámos a escola. Em retrospectiva, é assim, tão poético, mas durante os quinze anos ou mais de escola até à conclusão do ensino secundário muitos sentem revolta, desconforto, desprezo pela escola. Mas como pode ser algo tão útil e tão bom encarado como algo desagradável, que até uma consulta no dentista é um bom pretexto para evitar?

Não quero estar a fazer aqui de advogado do diabo, ou querer ser diferente só para chatear, mas adorei o meu tempo de escola. A sério, era com redobrado prazer que acordava à 6:50 da manhã, ainda noite cerrada no Inverno, e caminhava dois quilómetros por caminhos de terra batida, passando por fábricas de cortiça que poluíam o ar que respirava, levando com a água dos carros que passavam na auto-estrada nos dias em que chovia. Na véspera do primeiro dia de aulas em que sabia que ia rever os colegas do ano lectivo anterior praticamente não pregava olho, e ainda ia para a escola fresco como uma alface. Mesmo os tempos que detestei recordo com alguma nostalgia, e penso que aprendi bastante com o meu sofrimento, que bem visto, até nem foi sofrimento nenhum. Durante os anos desde que era um pequeno analfabeto até ao dia em atingi a maioridade a escola ensinou-me um pouco de tudo, e assisti a muita coisa. Aprendi a amar, a odiar, brincava com uns colegas, andava à bulha com outros, tive professores que me marcaram, e mesmo hoje mantenho contacto com alguns deles. Cheguei mesmo a ter colegas que morreram, fui suspenso dois dias no 11º ano por escrever obscenidades num teste de inglês, e muitas vezes dou por mim a rir quando me lembro de alguns episódios. Posso não me recordar o que comi ao jantar ontem, mas lembro-me como se fosse hoje da semana africana no refeitório lá da escola, onde comi muamba de galinha, kalulu e cachupa pela primeira vez. Tantas memórias que guardo no livro da idade da inocência, mas porque é que recordar é sempre mais fácil que viver?

Esta alergia que muitos têm à escola, cada um com maior ou menor intensidade, deve-se ao facto de termos sido inicialmente obrigados a frequentá-la. Freud explica: é um trauma de infância. Naquele fatídico dia em que os nossos pais nos deixaram no Jardim de Infância entregues a um grupo de desconhecidas vestidas com batas e de socas nos pés, começou o nosso divórcio com o nosso ciclo de aprendizagem. Quando deixei o meu filho no infantário pela primeira vez, reparei na expressão do seu rosto e no rosto da maioria das crianças que se aventuravam pela primeira vez no universo da educação. Olhavam-nos em silêncio enquanto nos afastávamos, com os olhos lavados em lágrimas, e pareciam estar a dizer “porque nos fazem isto? Porque nos abandonam?”. Eventualmente adaptam-se, fazem amigos e desenvolvem uma cumplicidade com os professores. Quando aprendem as primeiras letras, formam as primeiras sílabas, tomam contacto com os números e resolvem as operações aritméticas mais básicas, acham graça, mas devem ficar a pensar: “porque carga de água nos estão a ensinar isto?”. Agora sabemos porquê, mas depois das letras e dos números com que lidamos todos os dias, não vem ninguém levar-nos bolachinhas e um copo de leite morno antes de nos fazer dormir a sesta.

Para muitos que agora se sentam nas cadeiras da salas de aula, a escola “é uma seca”. Era assim no meu tempo pouco terá mudado nesse sentido. A última aula da sexta-feira era fim de um calvário, a primeira da segunda seguinte um martírio. Tinha colegas que ao cabo de um mês de aulas do 1º período começavam a contar os dias até às férias de Natal. Ouvem-se queixumes do tipo “estava tão bem na caminha”, ou “a merda da aula nunca mais acaba”, ou ainda “porque é que mesmo a chover tenho que vir à escola”. Qualquer coisa era preferível do que ir à escola, até ficar doente. Ter quarenta graus de febre era “preocupante” para os pais, mas para os cábulas era uma guia de dispensa da escola. Há colegas que gostamos tanto como um ataque de piolhos, funcionários que são uns “fascistas”, a comida do refeitório é pior que uma lavagem e todos os professores são “uns chatos”, ou “xatos”, como se diz agora. Entre ficar em casa deitado no sofá a olhar para o tecto e ir à escola, optáva-se pela primeira, e hoje com a internet e as consolas de jogos, esse sentimento multiplica-se por mil. Se pensamos que a escola é tudo isto e muito mais, se dizemos dela cobras e lagartos, esperem só até começarem a trabalhar para ganhar a vida.

Vão para o emprego todos os dias, faça chuva, faça sol, e só com muita sorte a distância é igual ou ligeiramente maior que a da escola quando eram estudantes. Uma greve dos transportes era desculpa que chegava e sobrava para faltar à escola, mas agora significa que não vão ser pagos, e com alguma sorte não são despedidos. Os colegas que detestavam na escola vão deixar saudades, comparados com alguns que vão encontrar nesse mundo cão que é o mercado de trabalho. Os professores, que eram uns “xatos”, vão parecer anjinhos quando conhecerem algumas chefias. O professor metia-vos na rua mas deixava-vos entrar na aula seguinte. O chefe manda-vos directamente para o departamento financeiro para arrumar as contas e se os vê por lá outra vez chama a segurança. Na escola tinham três meses de férias por ano, agora têm duas semanas, ou com alguma sorte vinte dias. Não fizeram o trabalho de casa? Não vinha daí nenhum mal ao mundo. Não fizeram o trabalho? Não comem. Por falar em comer, durante o tempo que andavam na escola tinham o jantar na mesa no fim do dia sem terem mexido um dedo para isso. Agora se não fazem vocês o próprio jantar passam fome. Aquelas contas que agora nos deixam a cabeça em água, nos tempos da escola nem sabiamos que existiam, os pais pagavam, porque a nossa única obrigação era...ir à escola. Sabem porque é que os nossos pais davam tanta importância a que fossemos para a escola? Os que agora também são pais já sabem. E têm inveja dos filhos.

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