Fosse o meu pai vivo, e completava hoje 64 anos. Parece pouco para os dias de hoje, e a verdade é que foi aos 51 anos que o seu terrível hábito de consumir três maços diários de SG Gigante lhe veio pedir contas sob a forma de um carcinoma do pulmão. Talvez tenha contribuído também a sua dieta de queijos e enchidos, o balão cheio da corrosiva aguardente S. Domingos que entornava depois do jantar, ou as dezenas de cervejas Sagres que bebia ao fim-de-semana para acompanhar as sandes de torresmos. O meu pai raramente bebia água, pois dizia que tinha “uma saúde de ferro, e não queria enferrujar”. Por muito irónico que seja, não posso deixar de sorrir quando me lembro dele dizer essas palavras. Podia ter vivido mais, ou até o suficiente para que não estivesse aqui a falar dele com este tom grave de ausência embebido de saudade, mas e depois? Usou o tempo que tinha como lhe apeteceu, e se foi curto, aproveitou-o como quis. Podia não ter fumado nem bebido, que morria na mesma. Assim bebeu e fumou até não poder mais, e agora fica à nossa espera. E pensam que se vão safar só porque não fumam nem bebem? Pensem lá um bocadinho.
O meu pai, e peço desculpa por não o ter apresentado antes, era aquele senhor alto e bem parecido que está naquela fotografia de pé, sem camisola, ao lado daquela estátua de um porco preto: o António João. Vê-se logo que tenho a quem sair quando sou diariamente elogiado pela minha aparência de deus grego. Aquela fotografia, a única que encontrei dele na internet, foi tirada na Guiné-Bissau, onde serviu a força aérea durante a Guerra Colonial. Isto foi antes de eu nascer, portanto pode-se dizer que estou ali também, de uma certa maneira. O meu pai esteve em África, onde eu nunca estive mas gostava de ter estado, ou de lá ir qualquer dia. O meu pai esteve na guerra, onde eu nunca vou querer estar, e sobreviveu. Não foram as balas do inimigo que o derrubaram, mas os cigarros que optou por fumar desde os 17 anos. O meu pai morreu como quis, quando quis e porque quis, não foi preciso ninguém lhe dizer.
O meu pai era electricista, uma nobre profissão. Um homem que do nada, e com as suas próprias mãos, levava a luz onde antes só existiam trevas. Tivesse sido inventada a electricidade naquele tempo, e também Jesus tinha sido electricista, e não carpinteiro. Estava sempre bem humorado. Não me lembro de o ver chateado dois dias seguidos. Podiam ser os piores dos dias – e tivemos a nossa quota de crises domésticas – que ele encontrava qualquer coisa que redimisse o mal. Ria-se com gosto daquilo que achava engraçado, e às vezes ria simplesmente porque os outros à sua volta também riam. Só o vi a chorar quando morreram os meus avós. Essa foi uma das coisas que ele me ensinou e eu não aprendi: não fiz o mesmo por ele. Conseguia também ser sério. É a única pessoa que conheci que fazia uma cara séria quando assistia a um filme para adultos. Falava alto e fazia cara de mau quando se chateava. Os seus silêncios de reprovação gelavam o ambiente no dia mais quente do Verão. Não batia, não me recordo de bater, pelo menos a sério. Resolvia tudo com diplomacia, cuidando sempre que tinha a última palavra.
Nunca mais me vou esquecer de uma “peregrinação” a Fátima, quando sentados à mesa de um café perto do santuários estávamos entretidos a atirar guardanapos de papel uns aos outros – eu, ele e o meu irmão. Um dos guardanapos acerta na cabeça de um tipo sentado na mesa de trás, que num jeito afectado começa a esfregar a cabeça como se tivesse sido atingido por uma pedra. Preocupado, o meu pai dirige-se ao homem e pergunta-lhe “se precisava de ir até às urgências”, e o indivíduo ficava sem palavras, consciente de não ter levado o incidente na brincadeira. E era apenas isso, uma inofensiva brincadeira. Como ele gostava de brincar. Ficava encantado ao ouvi-lo contar como foi o seu dia, com as suas histórias, com os seus exageros, com a forma como relativizava todos os problemas. Quando reencenava uma das incidências do seu dia-a-dia, todos os personagens tinham uma voz engraçada, menos ele, claro. Quando ligava para alguém era especialmente educado: “Boa tarde, posso falar com o sr. Gonçalves, se faz ‘favore’?”. Tinha um sotaque montijense muito discreto, que só se notava quando queria pôr um ponto final a uma discussão sem pés na cabeça: “ó senhor, tenha ‘juíze’!”
O meu pai era benfiquista – o seu maior defeito, que lhe perdoei. Afinal nasceu e cresceu numa época em que ser do Benfica era praticamente obrigatório. Foi vítima das circunstâncias, coitado. Recordo com carinho as nossas rixas sempre que jogavam o Benfica e o Porto, que levavam a minha madrasta a ir visitar a mãe dela na companhia da minha irmã, tal era o pé-de-vento que se levantava lá em casa. Depois disso o clássico nunca mais foi o mesmo. Tenho saudades de o ver a rir com vontade enquanto apontava para as minhas trombas amuadas com o indicador em riste quando o Benfica ganhava – deve ser por isso que agora o Benfica nunca ganha. Tenho mais saudades ainda dos tempos em qua iamos juntos ver o Montijo jogar, no também saudoso campo Luís Almeida Fidalgo, e o ouvia a insultar o árbitro. Foram etapas fundamentais no meu processo de aprendizagem, que moldaram a minha personalidade. Com ele aprendi muito: o que fazer, bem como o que não fazer.
Não era religioso, não me levou a baptizar, e isto é algo que lhe fico eternamente grato, mas levava a mal que se insultasse a religião ou a crença alheia. Era um encarregado de educação “à antiga”: não me recordo de uma única vez que me tenha ajudado nos deveres. Dava-me sermões quando saiam as notas, fossem boas ou fossem más. Deixava-me à vontade, entregou-me as rédeas do meu próprio destino, mas queria ver resutlados. Quando tirava notas altas a disciplinas que ele considerava “inúteis”, como Educação Musical, Inglês ou Desenho, ficava aborrecido. Ele queria que fosse electricista, que usasse as mãos, como ele. Como me encheu de orgulho que ele tivesse sido electricista, e ainda para mais um bom electricista, tão talentoso, mas nunca quis ter umas mãos como as dele, para ser sincero. À medida que me ia aproximando da maioridade, senti que gostava mais de mim, que me levava mais a sério. Quando lhe ia comprar bagaço ou cigarrilhas deixava-me ficar com o troco, e quando fazia algum comentário próprio de adolescente que pensa que sabe tudo, ria-se e desmanchava-me o penteado com uma “festinha” das suas.
O meu pai não foi um bom pai nem um mau pai: foi o meu pai. Em que manual, código ou cartilha vem o que é um bom ou um mau pai? Foi o pai que tive. Num dia como o de hoje, o do seu aniversário, ficava especialmente ternurento, mais tolerante que o habitual. Quando lhe cantávamos os parabéns ficava encolhido a sorrir, como uma criança, e apagava as velas com um sopro decidido e uma cara muito séria, como se no caso de ficar uma vela acesa, se abatesse uma grande desgraça sobre toda a família. Com que então hoje é mais um desses dias. Parabéns, António João, quero que saibas que me lembrei de ti outra vez nesta data. Custa mais lembrar-me dela sem aquela angústia dos dias antes, sem nunca saber o que comprar para te dar como prenda. Um cinzeiro ou um isqueiro era sempre quanto bastava para te deixar feliz. Querias lá saber de prendas, quando mal tinhas ainda nascido? Então vamos lá fazer o brinde e comer o bolo, um ritual a que todos eram obrigados sob pena de deixar o pequeno Tó de birra. E logo no dia dos seus anos. Então à nossa saúde, e até um dia destes pai.
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