A irmã Juliana Devoy, na imagem, dirige desde 1990 o Centro Bom Pastor, uma instituição com fins caridosos que presta assistência, entre outros, às vítimas da violência doméstica. Quando falamos de violência doméstica, falamos sobretudo de mulheres, a parte fraca do contrato familiar. Em vinte e três anos Juliana Devoy assistiu a casos de abusos de mulheres em catadupa, provavelmente mais dos que gostariamos de ficar a saber para ficarmos convencidos de que este é um problema real, e só quem não o sofre na pele o pode tratar com indeferença, ou remetê-lo à distância de "problema dos outros".
Devoy diz que no passado os casos de violência doméstica estavam relacionados sobretudo com a crise económica. Casais que passavam por dificuldades viviam num ambiente de incerteza que muitas vezes os levavam a discutir, e no limite dessa discussão, a parte mais forte (o homem) tinha tendência para agredir a parte mais fraca (a mulher). Actualmente, com um nível de empregabilidade quase plena, muitos agregados familiars têm pelo menos um dos seus elementos empregados numa das concessionárias do jogo, mormente nos casinos, como "croupier" ou noutra profissão onde se convive de perto com o fenómeno das apostas. Alguns maridos contraem dívidas de jogo, obrigam a mulher a ajudá-lo no pagamento dessas dívidas, muitas recusam, e daí à discussão e consequentemente à violência é um pequeno passo.
A religiosa será talvez a maior autoridade do território em matéria de violência doméstica, e digam o que disserem, sabe do que fala. O debate sobre a necessidade ou não de tornar esta forma de agressão crime público não tem qualquer fim político, não serve interesses económicos ou empresariais, não é um complô para limitar liberdades individuais ou direitos adquiridos: é uma forma de impedir que os mais fracos sejam agredidos pelos mais fortes, sem que o possam denunciar por estarem ligados por laços familiares. É um conceito surreal e arcaico que leva a assumir que um homem adquire uma mulher como quem adquire um objecto no momento em que celebra com ela um contrato de casamento, e se quiser atirar esse objecto ao chão e parti-lo em pedaços, ninguém tem nada com isso, pois "é seu", porque foi por ele "adquirido".
O deputado José Pereira Coutinho apresentou mais que uma vez na Assembleia Legislativa um diploma que propõe criminalizar a violência doméstica, e a proposta tem sido sempre chumbada. Ficamos a coçar a cabeça mordidos pelo piolho da dúvida: como é que algo tão horrível como a violência doméstica, que implica agressões que podem ir de um simples estalo até ossos partidos e orgãos dilacerados não colhe a simpatia desta gente supostamente inteligente, e muita dela eleita pelo voto popular? Bem, se o problema é mesmo as dívidas ao jogo, como alega Devoy, fica tudo explicado. Não cabe pela cabeça de ninguém interferir com a principla fonte de receitas do território, mesmo que pelo caminho se registem algumas baixas. Agiotagem, penhores, violência doméstica provocada por dívidas ao jogo, são tudo males que só seriam evitados com uma interferência directa nas regras do jogo "do jogo". E isto não passa pela cabeça de ninguém, é óbvio.
Quando Juliana Devoy acusa Coutinho de "não ser sensato" ao apresentar a proposta de lei sem garantir junto dos seus pares os apoios necessários para que seja aprovada, não me resta senão concordar com ela. Já o tinha dito em Janeiro, aquando da primeira "nega": mais valia não ter apresentado a lei. De facto é humilhante para as vítimas que não fique reconhecido o seu sofrimento e não se encontrem soluções para evitar que estas situações se repitam no futuro, tanto para elas como para a próxima geração de mulheres violentadas pelos selvagens dos maridos. Apresentar só por apresentar vale muito pouco, não passa de boas intenções, e até de populismo, se quiserem. Fosse eu deputado e quisesse apresentar uma proposta com que não concordasse por aí além mas me "ficasse bem" e soubesse que iria ser reprovada, não me inibia de a apresentar.
Os deputados reprovaram a proposta escudando-se no argumento de que "estão a aguardar a proposta do Governo". Sim senhor, o Governo e a sua mão apaziguadora com retoques de divino, de quem sabe o que faz. O orgão legislativo do tridente produz sempre soluções para os problemas mais cabeludos, e mesmo que o resultado seja uma proposta de crime semi-público, um verdadeiro "nim", nem não nem sim para a solução deste problema, com toda a certeza será aprovado. Como alguém disse uma vez e muito bem, até uma proposta para a fabricação de uma bomba atómica passaria no hemiciclo. Fosse o apoio às vítimas da violência doméstica uma actividade altamente lucrativa, e estava a irmã Juliana Devoy toda contente com este impasse - pelo menos à luz das mentalidades locais, que põem o dinheiro em primeiro lugar, em segundo o dinheiro, e só em terceiro o dinheiro. Quando sair a tal lei sobre a violência doméstica que o Executivo tem guardado para as calendas gregas, as vítimas vão aparecer na fotografia a sorrir com o polegar ao alto em sinal de aprovação. E com uns dentes a menos.
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