terça-feira, 19 de novembro de 2013

As noites loucas do sr. rato


Quinta-feira, 14 de Novembro. Depois de ter provado e reprovado a cenoura na noite anterior, penso em qualquer coisa de novo para oferecer ao sr. rato. No topo do frigorífico encontro uma caixa de pão de tosta, aberta há já algum tempo, e como nunca tentei oferecer-lhe pão, vai ser isso mesmo. Abro a caixa e reparo como as tostas ainda se encontram crocantes, hermeticamente seladas em pacotes de plástico, contendo duas cada. Parto uma tosta em pedacinhos, e como sei que o sr. rato não gosta de comida seca, deito-lhe em cima um fio de azeite, e como gosta de doces, um pacote de açúcar para completar o arranjo. Na manhã seguinte, a tosta com azeite e açucar continuava intacta, e não escutei nenhum movimento durante a noite. Este seria um daqueles dias em que sr. rato tinha ficado a fazer serão - ou neste caso, a fazer manhã. Vou trabalhar, depois logo se vê. Regressado pela hora de almoço, verifico que a tosta foi submetida à prova de sabor sr. rato. Aparentemente mordiscou alguns pedaços, os que estavam cobertos com açúcar, e não gosta de azeite. Conclusão: açúcar sim, azeite não, pão de tosta mais ou menos. É um finório, este sr. rato.

Sexta-feira à noite, opto pelo regresso aos clássicos, e deixo-lhe algo que vai gostar com toda a certeza: gomos de tangerina cortados em metades, com quatro quadrados de chocolate. Nessa noite escuto o sr. rato em tracção pelo sótão, e subitamente um estrondo, seguido de um guincho prolongado. Que diabo, o que teria acontecido? Queres ver que o sr. rato foi esmagado por alguma das caixas de livros ou CDs que tenho ali guardadas? Preferi não saber, e fui dormir. Na manhã seguinte confiro o prato com o Templo da Barra ao fundo, onde o sr. rato aprecia a minha culinária de fusão "bípede racional/quadrúpede roedor", e foi com grande satisfação (alívio?) que vi que o chocolate tinha passado à história, e restava metade da tangerina. Morto é que ele não estava, com toda a certeza. Subi até ao sótão para ver o que tinha acontecido na noite anterior, e não vi nada derrubado ou partido. Mistério. Do que não tenho dúvidas que o sr. rato é definitivamente um trapalhão. Um ratito torpe e desajeitado. E gosta de chocolate, e de açúcar, também. Será ainda um pequeno rato em idade escolar,um infante? Quem sois senhor rato. Revela a tua identidade e pode ser que te compre um chupa-chupa.

Nessa noite fui ao Festival da Gastronomia (tema de um "post" a publicar mais tarde) e voltei a casa às 10:30. Acendo a luz da cozinha, e surpreendo o sr. rato a limpar o prato com o desenho do Templo da Barra ao fundo. Passa mesmo em frente aos meus pés como um raio, e desta vez opta por fugir pelo ralo da casa-de-banho, uma das suas saídas/entradas predilectas. Que falta de educação, podia ter ficado para agradecer, ou pelo menos lavava as mãos. Como "limpou" o prato, lindo menino, hoje já não leva mais nada. Bonne nuit, Ratatouille. Dia seguinte, Domingo. Sacudindo a letargia típica das tardes de véspera de segunda, vou ao New Yaohan, inteirar-me das últimas novidades - fazia uns dois meses que não punha lá os presuntos. Das poucas coisas que comprei, e não, nenhuma delas foi presunto, destaco uma salada de sushi de salmão,soja, ovas e carne de caranguejo, assente num molho de couve picada que além de crua estava rija. Rija não, rijinha. Como não sou jumento nem búfalo, resolvi deixar as couves para o sr. rato essa noite, e juntei-lhe um pedaço de milho bebé que se havia partido em duas metades, outra das minhas aquisições nessa tarde. Fui dormir cedo, e nessa noite nem sombra do sr. rato. Manhã seguinte, dia de trabalho, couve e milho intactos.

E foi assim todo o dia de segunda-feira. Ou o sr. rato se ausentou por esses telhados do Tarrafeiro e arredores à procura de aventura, ou rejeitou a nova entrada do cardápio. Foi nessa noite que encontrei a resposta: ambas. Mas insisti; deixei lá a couve pelo segundo dia, e podia ser que a exposição aos elementos lhe conferisse um aroma e um sabor mais de acordo com os gostos do sr. rato. Talvez a frescura não seja a sua praia, e prefira a comida com uma relativa dose de fermentação. Fui dormir já depois da uma da manhã, e talvez inebriado pelo sono, esqueci-me de efectuar um procedimento a que me tinha habituado nos últimos dias: despejar o lixo, ou pelo menos dar um nó no saco preto, que por coincidência, estava especialmente cheio. Ainda não tinham batido as sete badaladas de terça-feira, e sou alertado por um enorme reboliço que se ouvia da cozinha. Regressado de um Domingo em que não se fez notar a sua existência, o sr. rato deparou com um banquete, como que a celebrar o seu regresso. "Uma lata de lixo cheia? Para mim? Não deviam..." deve ter dito ele em ratonês, enquanto enxugava uma lágrima do olho.

O que se passou a seguir, caro leitor, foi quase pornográfico. A forma como o sr. rato mergulhava no saco do lixo, rebolava por entre as cascas, latas, pacotes vazios e outras porcarias faziam uma orgia romana parecer um grupo de crianças do jardim de infância a darem passeios de pónei. O sr. rato pulava, remexia, enfiava-se até às profundezas do lixo - que por acaso era todo desse dia - e aproveitava para se emporcalhar ao mesmo tempo que comia. Atirou a lata do Red Bull para o chão, e consegui escutá-lo a empurrá-la com focinho, tentando aproveitar as gotas residuais do doce néctar. Ouvia-o a subir até ao cano do lava-loiça para ganhar balanço, e aí mergulhar novamente no lixo, como o Tio Patinhas nas moedas da sua caixa-forte. Era possível deduzir através do som do plástico que se enfiava dentro do comprido saco de pão-de-alho que se compra congelado no Park'n'Shop, e ia chafurdando nas migalhas que lá tinham ficado. "Sim, sim, é disto que eu gosto", parecia dizer ele em êxtase, "Quais couves, qual carapuça". E ria, ria um riso ultrassónico de rato que me penetrava nos tímpanos e me mantinha desperto enquanto a primeira luz do dia entrava pela janela do quarto.

Se foi tudo isto que me foi dado a perceber apenas pelo que escutei, imaginem o que seria se tivesse visto com os meus próprios olhos. As imagens que lá ficariam gravadas seriam de um grafismo tal que a própria terra se recusaria a comê-los, estimado leitor, a quem peço desde já as mais sinceras desculpas pela descrição tão explícita dos eventos desta terça-feira, que parecia uma terça-feira como outras tantas, mas que fica marcada pela promiscuidade do sr. rato, esse desenvergonhado. A mais pequena distração foi a morte do artista, e a vitória do sr. rato. Ganhaste desta vez ó vil criatura. Hoje tens um prémio. Mas isso fica para contar de uma outra vez.

1 comentário:

Anónimo disse...

O Leocardo sente-se tão só que agora tem um rato para lhe fazer companhia.
Adopte um cão, homem!