Passaram ontem 22 anos sobre o massacre do cemitério de Santa Cruz, em Díli, Timor-Leste. Nesse fatídico dia de 12 de Novembro de 1991 cerca de 250 timorenses, na sua maioria jovens, perderam a vida, naquele que foi o episódio mais sangrento dos 26 anos de ocupação da ex-colónia portuguesa pela Indonésia, e o rastilho que de um processo que culminou com a auto-determinação daquele território em Maio de 2002, tornando-se o primeiro país independente do século XXI. Tudo começou um mês antes, quando um grupo de parlamentares portugueses planeou acompanhar a visita do Representante Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos e Tortura, Pieter Kooijmans, acompanhados de 12 jornalistas. As autoridades indonésias objectaram à presença da repórter australiana Jill Jolliffe, que tinha ligações ao movimento independistas da FRETILIM, e recusou passar-lhe as necessárias credenciais. O grupo desistiu da visita, o que causou um grande mal-estar entre a resistência timorense. No dia 28 de Outubro um grupo de pró-independentistas juntou-se na Igreja de Motael, perto de Díli, e depois de localizados pelo exército indonésio, foram confrontados por um grupo de pró-integracionistas. Da rixa resultou uma baixa mortal para cada um dos lados. O integracionista Afonso Henriques foi esfaqueado, e o independentista Sebastião Gomes foi levado para fora da igreja pelo exército indonésio e abatido.
Foi organizada uma romagem em memória de Sebastião Gomes no dia 12 de Novembro, a sair da Igreja de Motael e a terminar no cemitério de Santa Cruz, em que mais de duas mil pessoas participaram. O exército indonésio também fez questão de estar presente, pois apesar da maioria ter sobretudo motivações religiosas, estariam entre os participantes uma quantidade significativa de elementos da resistência e de grupos pró-independência. Estes faziam-se notar, gritando palavras de ordem e transformando a cerimónia numa espécie de "rally" político. O cortejo era ruidoso, mas contudo pacífico, e as forças ocupantes pareciam procurar um motivo válido para dispersar a multidão. Vários eram os que exibiam faixas contra a ocupação indonésia e levavam consigo bandeiras de Timor-Leste independente. Entre estes últimos estava uma menina em idade escolar, que por esse motivo foi agredida por um militar indonésio, o major Gerhan Lantara. Revoltada, a multidão matou Lantara, e o clima era já de enorme tensão, à medida que se chegava ao cemitério de Santa Cruz. Já à porta do cemitério, os manifestantes dividiram-se em dois grupos, um que prosseguiu rumo à campa de Sebastião Gomes, e outro que ficou junto do portão entoando slogans e palavras de ordem contra as forças de ocupaçπo indonésias. Foi aí que surgiram 200 soldados indonésios, que começaram a disparar indiscriminadamente sobre os manifestantes, que se precipitaram para dentro do cemitério. Os que já tinham entrado corriam até onde era possível, mas a fuga era dificultada pelos muros que limitavam o mausoléu de Santa Cruz. Tudo isto foi filmado pelo operador de câmera inglês Max Stahl, que fazia a cobertura do protesto na companhia de dois repórteres americanos, Amy Goodman e Ally Nairn, que foram também atacados. O rescaldo foi de mais de 200 mortos, centenas de feridos e outras tantas detenções. A cassete com as imagens recolhidas por Stahl correram mundo no dia seguinte, e a comunidade internacional tomava consciência do drama humano que se vivia na oprimida província indonésia de Timor-Leste.
Antes de prosseguir, gostava em primeiro lugar de deixar claro que sempre nutri uma especial simpatia pela luta do povo timorense pela auto-determinação. A anexação por parte da Indonésia em Dezembro de 1975 foi ilegítima, feita no contexto da Guerra Fria, e com o apoio dos Estados Unidos, que temiam que a criação de um estado socialista na região periférica da Austrália produzisse um efeito de contágio. A descolonização atabalhoada de Portugal, que na prática abandonou os timorenses à sua sorte e as próprias divisões entre a população de menos de um milhão contribuiram também para que o regime indonésio tivesse a tarefa facilitada. Em segundo lugar condeno qualquer tipo de massacre, especialmente um deste tipo, em que o uso da força foi desproporcional e fruto de uma attitude provocatória da parte do agressor. Senti a dor do povo timorense, fiquei tão chocado com as imagens do dia 12 de Novembro de 1991 como qualquer pessoa humana e sensível, e congratulei-me com a declaração de independência em Maio de 2002 e o reconhecimento unânime da parte da comunidade internacional.
Posto isto, a postura do Estado Português e dos próprios portugueses após o massacre do cemitério de Santa Cruz foi uma demosntração embaraçosa de hipocrisia, um acesso de paternalismo tardio, e pelo meio foram cometidas injustiças contra inocentes em nome da causa da moda, que muitos apoiaram sem saber sequer da missa a metade. De um dia para outro toda a gente ficou a saber que existia um lugar algures nos confins do mundo chamado Timor-Leste, que em tempos foi uma colónia portuguesa, e que necessitava urgentemente do nosso apoio incondicional - como se nunca tivesse precisado antes. Antes das imagens difusas que mostravam um grupo de jovens a corer em todas as direcções num cemitério do outro lado do planeta, ninguém se lembrou que existia um povo que nos quinze anos anteriores a esse dia vinha sendo perseguido, preso e torturado, que muitos outros tinham morrido em nome da autonomia que perseguiam, despidos da sua honra e da sua dignidade, impedidos de exercer a sua religião, içar a sua bandeira ou aprender a sua língua nas escolas. Subitamente, aqueles timorenses que tinhamos deixado entregues à sua própria sorte em 1974, ficavam no topo da lista das prioridades.
Mas será que nos esquecemos completamente deles? Nem por isso. Recordo-me quando em 1987 foi realizado um espectáculo de variedades com vista à angariação de fundos para os refugiados timorenses que vivam em condições sub-humanas em barracas, atirados no Vale do Jamor, ali para a Cruz Quebrada, não muito longe do Estádio Nacional, onde se disputa todos os anos a final da Taça de Portugal de futebol. O espectáculo foi transmitido pela RTP e contou com a generosidade dos portugueses, que contribuiram "para os pobrezinhos", e pouco importa se são eles timorenses ou de outra raça qualquer. Depois do massacre foram todos recolhidos do Vale do Jamor, Portugal (e Macau) recebeu uma nova vaga de refugiados vindos de Timor-Leste, e passámos a tratá-los como uns coitadinhos, como os nossos animais de estimação, como caniches. Enchemo-los de mimos, foram super-subsidiados, entravam nas nossas universidades através de um contigente especialmente criado para eles, tinham prioridade no acesso ao emprego, na fila dos autocarros e da caixa do supermercado. Quando encontrávamos um timorense, abraçavamo-lo e chorávamos com eles, mesmo que eles não estivessem a chorar, ou não entendessem muito bem a razão da nossa aflição.
Criámos um novo super-herói, um tal Xanana Gusmão, o líder da resistência timorense que refugiado nas matas de Timor-Leste combatia o invasor com braveza. Se ninguém sabia quem era o presidente indonésio de então, ficou logo a saber, e de virtual desconhecido um tal Suharto passou a ser um ditador, um assassino, um filho-da-puta da pior espécie. Os portugueses passaram a odiar o povo indonésio por razão nenhuma, e nos tempos do mIRC invadiam as salas de conversação indonésia e repetiam incessantemente frases do tipo "FREE EAST TIMOR", o que valeu o bloqueio de todos os servidores portugueses de aceder a essas salas - e também o que mais lá iam fazer a não ser insultar e incomodar quem não tinha nada a ver com a ocupação de Timor-Leste? Um tal Manuel Macedo, presidente da associação de amizade Portugal-Indonésia, um empresário como outro qualquer, foi imediatamente chamado de Judas. Passava um comovente e imaginativo anúncio na televisão que mostrava umas laranjas a serem espremidas e que apelavam os portugueses a não passarem férias em Bali. Pois claro, estamos todos fartos de saber que depois do Algarve, Bali é o destino de eleição de férias da família média portuguesa. Basicamente esta foi a nossa contribuição à distância para a luta do povo timorense pela auto-determinação.
Houve quem tivesse lido nas entrelinhas e lucrado com o "aftermath" do massacre de Santa Cruz. Em 1992 alguns elementos das principais bandas pop portuguesas juntaram-se e criaram os Resistencia, um super-grupo que teve um enorme sucesso graças à associação com a causa do povo timorense, e para provar isso mesmo um dos seus (poucos) temas originais era "Timor", escrito por Pedro Ayres Magalhães. Também Rui Veloso, o rei "de toda la musica ró" juntou-se ao guitarrista dos Extreme, o luso-descendente Nuno Bettencourt e gravou o tema "Maubere", em ingles. Um enorme sucesso, chegando ao primeiro lugar dos tops de vendas em todo o mundo - é claro que estou a brincar, não chegou nem ao primeiro lugar do top português, e passou completamente despercebido além-fronteiras. Pelo menos os portugueses ficaram a saber que aqueles indígenas que uma vez fizeram parte do nosso imenso império eram os "mauber". No vídeo aparecia repetidamente a imagem que vemos em cima, de um jovem timorense ensanguentado nos braços de outro jovem timorense: "coitado, com toda a certeza que morreu, o pobrezinho". Por acaso o jovem que se tornou um símbolo da opressão indonésia sobre o seu povo está vivo, bem de saúde e manda cumprimentos. Estava a sangrar e a sofrer de dores, certo, e é isso o que normalmente acontece quando se é atingido por uma bala.
Depois de anos de sofrimento, Timor-Leste alcançou a tão ambicionada independência, a segunda da sua História - vamos lá ver se é desta. Xanana Gusmão, o tal herói da resistência, foi empurrado para a presidência, apesar de não querer nada com essas coisas; o que ele queria era estudar engenharia agrónoma em Coimbra. Xanana foi uma enorme desilusão, incapaz de unificar o seu povo, de erradicar a pobreza e o analfabetismo, e sempre com a sombra da corrupção a pairar sobre a sua cabeça. Tem ainda hoje um valor facial que lhe permite ocupar o cargo de primeiro-ministro, vá-se lá saber porquê. Com o espectro de uma Guerra civil a pairar durante os primeiros anos de independência, um desenvolvimento estagnado e o falhanço em trazer de volta os quadros formados no estrangeiro, Timor-Leste foi apelidada várias vezes de uma nação falhada, com dois quintos da população a viver com um dólar por dia e metade que não sabe ler nem escrever. Vinte e dois anos depois, o sangue derramado no cemitério de Santa Cruz é uma memória já distante, mas o sofrimento é ainda bem real.
Sem comentários:
Enviar um comentário