domingo, 10 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XIX: afinidades


Se há algo que não podemos escolher nesta vida, é a família em que nascemos. Quer gostemos quer não, temos um pai, uma mãe, dois pares de avós, e eventualmente uma molhada de irmãos, primos e tios que nunca escolhemos. Foram-nos impingidos, bolas, como quando caímos na cantiga daqueles agentes do “time-sharing”, comprámos um mês de férias no Algarve e pensamos que fizémos um bom negócio, e depois esse mês é Janeiro e ainda precisamos de limpar as latas de conservas e os preservativos usados do chão do apartamento. Da família que podemos escolher temos os parentes por afinidade, aqueles que vêm incluídos no pacote do casamento: os sogros, os cunhados, e em alguns casos os enteados. Nesse caso quem “sofre” com a falta de opções são eles. Um casal que tenha filhos é obrigado a “levar” com o cônjuge do seu descendente, e nas ocasiões especiais a família dele. Os laços de sangue obrigam a certos compromissos que não podemos evitar, mas a afinidade obrigam a fretes que temos que enfrentar com um sorriso amarelo, para não parecer “desagradável”.

Todas estas relações por afinidade são uma autêntica miséria. No fundo temos alguém que é sangue do nosso sangue e carne da nossa carne a misturar-se com gente que não tem nada a ver connosco, com completos estranhos. Os mecanismos do funcionamento das sucessões, do “crescei e multiplicai-vos” que a religião nos impingiu, obriga-nos a aceitar de bom grado que o nosso clã se misture com outro sem qualquer relação previamente estabelicida. Os antigos farós casavam com as irmãs para manter a pureza do sangue, os indianos combinam casamentos entre os filhos ainda antes do seu nascimento, e os ciganos casam com os primos. Mas nos povos supostamente civilizados e liberais, qualquer coisa serve, desde que o nosso filho e a nossa filha sintam que essa é a opção acertada. Podemos contribuir com a nossa opinião, mas entrar em conflito é contra-producente. Se o nosso filho ou filha encontra um parceiro de quem não gostamos e deixamos esse ponto bem assente, existe uma possibilidade de ele ou ela arranjarem outro ainda pior, só para nos chatear.

As relações inter-familiares adquiridas pelos laços do matrimónio dependem de uma série de factores tão extensa que enumerá-los daria uma lista mais extensa que a lista telefónica da Grande Lisboa e Margem Sul do Tejo. Existem uniões mais complicadas, especialmente se entre o casal existirem diferenças religiosas, rácicas ou económicas. O casamento entre alguém que professa a religião católica e outro que segue o Islão, por exemplo, leva logo à partida a diferenças quanto ao tipo de cerimónia de casamento, e num futuro próximo a que princípios vão os filhos de ambos ser educados, qual a fé que prevalece. Nos casamentos interraciais, especialmente entre pretos e brancos, existe sempre uma certa desconfiança, por muita tolerância que ambas as partes demonstrem uns com os outros. Se um dos nubentes é emigrante e a sua família se encontre a milhares de quilómetros, as distâncias amenizam os potenciais atritos, e a menor frequência dos encontros de ambas as famílias não deixam evidenciar as diferenças. Se for filho único e orfão, ainda melhor.

Dê por onde der, uma coisa é garantida: não existirá uma única união civil em que todos os elementos de ambas as famílias gostem todos uns dos outros. Se já é difícil que isto aconteça num círculo familiar unido pelos laços de sangue, torna-se praticamente impossível quando todos se misturam. O que proponho de seguida é um pequeno mano-a-mano entre os parentes por afinidade, o que pensam um do outro, quais os preconceitos ou outras barreiras que precisam de ultrapassar para bem do casamento do seu parente mais próximo, que teve a ousadia de nos obrigar a sermos simpáticos com pessoas que não conhecemos de lado nenhum, e nem pedimos para conhecer. Mais uma vez gostava de deixar claro que esta é a minha opinião pessoal, adquirida por mera observação, e não procuro fazer dela lei ou insultar ninguém. Agora que ficam avisados, aqui vamos.

Sogra-genro: A sogra, a mãe dela, é sempre um elemento de peso na relação entre o casal. Uma mãe quer sempre o melhor para a filha, ou pelo menos convence-se disso. Se a filha encontra um engenheiro, um médico, um advogado ou qualquer outra profissão liberal bem paga, é motivo de orgulho, e não se cansa de o elogiar perante as amigas e os vizinhos. Se o pobre genro não lhe enche as medidas, é “um pindérico”, e fica sempre com um pé atrás em relação a tudo o que ele faça. Dá conselhos à filha sobre como gerir o matrimónio, interfere na educação dos netos, mas lá no fundo sente alguma inveja da juventude do casal, e do entusiasmo da filha, e recorda do tempo em que tinha toda a vida conjugal pela frente.

Genro-sogra: Esta é a relação de afinidade que mais sofre de preconceito, e que mais puxa pelo anedotário popular. Não há jovem apaixonado que não sinta um nervoso miudinho na hora de conhecer a sogra, e na maior parte dos casos fica desiludido com a experiência. São raros os casos em que esta relação é um mar de rosas, onde a sogra é tolerante e compreensiva, e caso seja também atraente, viúva ou divorciada e assanhada, isso pode constituir um problema. Só que para muitos homens casados, a sogra é “uma bruxa”: se a esposa é refilona, recebeu instruções da mãe, e quando discutem atira-lhe amiúde com um “estás cada vez mais parecida com a tua mãe”.

Sogra-nora: Nunca é fácil para uma mãe, que criou, aleitou e trocou as fraldas ao filho vê-lo cair nos braços de uma megera que caíu do nada, quando ele está já criado e não é mais necessário medir-lhe a temperatura rectal. Perante a uma candidata a esposa do filho, mede-a da cabeça aos pés, analisa-a à lupa, sempre tendo ela própria como ponto de referência. Se não gosta dela, aconselha o filho a “procurar outra”, ou melhor ainda, que fique com os pais mais algum tempo, para “não fazer nenhum disparate”.

Nora-sogra: Qualquer mulher que ame realmente um homem faz os possíveis e os impossíveis para agradar à mãe dele. Suporta os maiores desaforos, escuta todas as opiniões, por mais descabidas que sejam ou por muito que discorde, e procura sempre manter a harmonia nessa relação triangular. Sente-se frustrada se ao companheiro é dado a escolher entre ela ou a mãe, e ele escolhe mãe.

Sogro-genro: Para um homem protector do seu património, neste caso da sua filha, a primeira impressão é tudo. O pai está sempre disposto a aceitar a decisão da filha na escolha de um parceiro, mas se não gosta dele e “tira-lhe logo a pinta”, não se inibe de protestar de imediato: “quem é este palerma que trouxeste para a minha casa?”. Se eventualmente casam, mantém-se neutro quanto às incidências da vida conjugal, mas se o genro trata mal a filha, não hesita em ir buscar a caçadeira e fazer-lhe um buraco no couro.

Genro-sogro: Assim como acontece na hora de conhecer a mãe dela, a sogra, um homem sente um arrepio na espinha quando chega a hora de conhecer o sogro. Como causar uma boa impressão? Como é ele em matéria de personalidade? Do que é que ele gosta? Devo falar do quê, de futebol? São estas as perguntas que faz à namorada antes de conhecer o pai dela. Ela diz-lhe que não precisa de ficar nervoso, e que basta “ser ele mesmo”. Optando por essa estratégia, a expressão no rosto do sogro quando são apresentados diz tudo.

Sogro-nora: Esta é normalmente a mais pacífica de todas as relações familiares por afinidade. Um homem quer que o seu filho seja feliz, educou-o para poder sentir, tal como ele, amor por uma mulher, casar, e dar-lhe netos. A nora pode ser feia, gorda ou burrinha que ele fará o possível para agradá-la, para que o filho se sinta à vontade. “Pelo menos o meu filho não saiu enjeitado”, pensa ele, enquanto respira de alívio.

Nora-sogro: Se a anterior é a relação mais pacífica, esta é a mais distante. Quando uma mulher conhece a família do seu homem, o inimigo está identificado à partida: a mãe dele. Ela tenta ser agradável com o sogro, respeitá-lo como pessoa mais velha, olhar para ele como um segundo pai, mas sabe que na hora do conflito com o marido é a sogra que assume as despesas da batalha.

Cunhados: Os irmãos e irmãs dele ou dela não interferem na relação conjugal, pois se tiverem o mínimo de bom senso, preocupam-se mais com as suas. Os homens olham sempre com uma certa desconfiança para os irmãos da esposa, da mesma forma que a esposa desconfia das irmãs do marido. O homem usa as irmãs da esposa como termo de comparação com ela, e a mulher usa os irmãos do marido do mesmo jeito. É quase mecânico, e só não se aplica esta regra no caso de um deles ou ambos serem filhos únicos.

Parentes: Primos, tios e outros que tais que só se vêem nas reuniões de família como casamentos e baptizados têm na relação conjugal um papel que não chega sequer a secundário: são meros figurantes. Se algum deles ousa meter a colher entre marido e mulher, pode esperar ouvir de algum deles: “olha lá, mas eu conheço-te de algum sítio?”.

Madrasta: Esta figura, assim como a sogra, parte sempre em desvantagem por culpa do nome. A madrasta da Cinderela tem uma má fama que a precede, e diz o povo de alguém que teve azar que “a sorte foi madrasta”. Esta relação pode ser um desastre, mas também pode resultar, dependendo de uma série de factores: a aceitação pela parte da madrasta do produto da anterior relação do seu marido (é sempre mais fácil quando são filhas), a idade dos enteados e a relação que têm com a mãe genuína, o papel do homem na manutenção da harmonia familiar. Pode ser complicado, e falo por experiência própria.

Padrasto: O papel do padrasto é mais ou menos como o da madrasta, com uma ou outra “nuance”. Um homem solteiro tem sempre mais dificuladade em aceitar os filhos de uma mulher divorciada com quem contrai matrimónio, e no caso de existirem filhos rapazes, pode acontecer olharem para o novo marido da mãe como um “usurpador”. No caso de existir uma filha adolescente ou na idade do consentimento bastante atraente, o caldo pode ficar entornado. Existem mesmo alguns filmes dedicados a esses casos: uns de terror, outros pornográficos.

São estas as principais relações adquiridas por essa coisa complicadíssima que é a afinidade. No fundo estamos a ser obrigados a ter "afinidades", que é sempre algo muito sério, e implica sentarmo-nos à mesma mesa com pessoas que ainda há pouco tempo não conheciamos de lado nenhum. O único antídoto para a afinidade é o divórcio, e no caso disso acontecer, podemos cruzar-nos na rua com alguém que já foi nossa nora, cunhado ou sogra e cumprimentá-lo com um simples "olá como está", mandar-lhe um adeuzinho, ou então ignorá-lo completamente. E qual é o problema? Afinal tivemos alguma afinidade com ele, mas depois passou-nos.

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