domingo, 15 de setembro de 2013

Macau: do mal o menos


Para rematar o fim-de-semana marcado pelas eleições legislativas, deixo-vos com o artigo da última quinta-feira do jornal Hoje Macau. Tenham uma óptima semana.

Quem esteve em Macau no período da transição lembra-se de como foram tempos em que se tomaram decisões difíceis. À medida que se aproximava o ano de 1999, data escolhida para a transferência de soberania do território para a R.P. China, era altura dos funcionários da administração optarem pela integração nos quadros da República Portuguesa, ou permanecer em funções na futura Região Administrativa Especial, o que tanto para os optimistas como para os pessimistas. Entre os que escolheram partir encontravam-se os que desejavam genuinamente regressar a Portugal, para junto dos seus, depois da “aventura” de Macau, os que temiam a repetição da atabalhoada descolonização das praças em África duas décadas antes, e os naturais de Macau que simplesmente não confiavam numa eventual administração chinesa. Os incidentes da Praça Tiananmen em Pequim no ano de 1991 ajudou muitos a decidir pela pacífica e alegadamente segura opção da integração em Portugal.

Chegada a hora de decidir, eu próprio optei por continuar em Macau. Apaixonei-me cedo por esta terra, e não via com bons olhos ter de recomeçar num país que me era cada vez mais distante e que nunca me ofereceu qualquer perspectiva. Claro que foi com reservas que tomei esta opção, mas o ímpeto próprio da juventude levava-me a nada temer, e a pensar que “nada como esperar para ver”. Era um sonhador, e ainda bem. Alguns portugueses como eu ainda ponderaram mandar isso da República à fava e ficar por esta terra que adoptaram como, mas não sentiam o apoio da administração que começava a ter os dias contados. Ficou célebre uma afirmação do General Rocha Vieira, o último Governador de Macau, que aconselhou aos portugueses que quisessem ficar que “aprendessem Mandarim”. A integração feita à pressa em Abril de 1998 dava a entender que o futuro não agourava nada de bom. Qual era a urgência de mandar embora todos os portugueses que serviam a administração de Macau antes do arrear da bandeira, se de Pequim não chegavam directivas algumas nesse sentido?

A maior surpresa foi a determinação com que muitos macaenses, portugueses naturais de Macau, decidiram dar esse passo no desconhecido. Muitos só conheciam Portugal das idas de férias, à terra dos pais ou dos avós. A maioria cometeu o erro de pensar que a vida seria mesmo assim, férias eternas, com diversão a rodos e jantares fora todos os dias nas melhores marisqueiras, idas à praia em todos os dias de sol e calor, enfim, boa vida. Alguns cometeram a ingenuidade de pensar que o seu estatuto lhes garantia um tratamento diferenciado dos portugueses de origem. O choque foi demasiado grande; em Portugal a semana é de trabalho e pouco mais, e os fins-de-semana são dedicados a limpar a casa. Em Portugal não há empregadas filipinas, e nem o orçamento o permitia, e com um pouco de sorte goza-se um pouco de descanso ou lazer ao Domingo. As distâncias tornam tudo mais difícil, desde o local de trabalho à escola dos filhos. É impensável fazer uma noitada a meio da semana e acordar cedo no dia seguinte para trabalhar, como se fazia em Macau. Mesmo os mais resistentes começam mais cedo ou mais tarde a sentir o peso do sono nas pálpebras às 10 da noite, quando na sua terra de origem essa era a hora em que começavam mais uma sessão de “mah-jong” com os amigos.

Bastaram poucos anos para que muitos regressassem, e mesmo hoje muitos continuam a fazê-lo, desiludidos com o “sonho português”. De que vale o clima maravilhoso, as paisagens lindas, a gastronomia riquíssima, das melhores do mundo, se não há tempo nem dinheiro para usufruír de tudo isto? O regresso levou mesmo muitos a desvincularem-se da administração, a tal que antes havia sido tão generosa com eles, convidando-os a juntar-se a esse enorme corridinho que é trabalhar em Portugal, sujeito a mil e um aborrecimentos que nunca tinham encontrado em Macau. Empregaram-se nos casinos, em bancos, em companhias privadas, onde calhou, desde que lhes garantisse o sustento e os deixasse longe do pesadelo, que é agora para eles uma mancha no passado, uma “lição de vida” que aprenderam a muito custo.

Além dos “filhos da terra”, foram muitos os portugueses que também procuraram o El Dorado macaense, desatando-se dos complicados nós que prendem os nossos compatriotas lá longe, no distante rectângulo. Alguns chegam aqui pela primeira vez, e são cada vez mais, deitando por terra a teoria de que “Macau acabou em 1999”. Outros regressam ao sítio onde um dia foram felizes, e para os que mantêm o BIR, a vida torna-se muito mais fácil em termos de empregabilidade. Pode não ser como antes, mas é certamente uma alternativa mais convidativa que o emprego precário, os sucessivos cortes e o apertar de cinto geral a que começaram a ficar habituados – e fartos. Macau pode não ser bonito como a Arrábida ou limpinho como Cascais. Os frutos do mar podem não ser tão frescos como os da nossa costa, nem a restante oferta gastronómica tão variada como a nossa. Não se pode ter tudo, de facto. Mas não é com paisagens nem mariscadas que se pagam as contas no fim do mês, e para quem conhece Macau, sabe bem do que falo.

A qualidade de vida não nos cai do céu: compra-se, e por vezes sai cara. Macau pode não ser tudo o que os seus antigos senhorios nos prometeram encontrar do outro lado, na Pátria, e mais uma vez se “esqueceram” de cumprir. Macau pode ser longe dos nossos entes queridos, dos amigos, do bairro de vivendas amplas, paredes caiadas, com terrenos a perder de vista onde os nossos filhos podem correr à vontade e jogar à bola. Em Macau mal cabe uma agulha, as ruas são estreitas, os apartamentos pequenos, aglomerados que lembram caixas de fósforos, que tantas vezes partilhamos separados apenas por uma parede com gente tão diferente de nós. Mas no fim, e pesando os pós e contras, Macau ainda fica a ganhar, e para quem bebeu da fonte do Lilau, “melhor o Diabo que já conhecemos”. Parece bruxedo.

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