O programa da RTPi "Inesquecível", apresentado por Júlio Isidro, presta homenagem a figuras do passado da televisão pública, socorrendo-se dos seus arquivos para nos transportar no tempo, muitas vezes até à era do preto-e-branco, quando o simples facto de aparecer no pequeno ecrã - nem que fosse por apenas cinco minutos - significava transformar-se numa celebridade, que todos reconheciam na rua. Os convidados do programa transmitido na madrugada de ontem foram o realizador Luís Filipe Costa e a escritora Alice Vieira, que tem um respeitável currículo de escrita para televisão, especialmente para programas juvenis. Alice Vieira é viúva de Mário Castrim, um crítico de televisão que é uma das minhas grandes referências, e foi comovente recordá-lo, através de uma singela homenagem deste "Inesquecível".
Nascido Manuel Nunes da Fonseca em Ilhavo no longínquo ano de 1920, Mário Castrim, o nome com que desde cedo começou a assinar as suas crónicas, passou grande parte da sua vida em frente ao televisor. Até à sua morte em 2002, foram 40 (quarenta!) anos de crónicas, primeiro para o Diário de Lisboa, e mais tarde para o Tal & Qual, na sua famosa secção "Canal da crítica". Sempre que tinha o Tal & Qual nas mãos, abria imediatamente até à penúltima página para ler "a crítica do Castrim". Pouco importava se tinha visto ou não os programas que revia naquela semana, pois só a forma como o fazia era já por si cativante. Foi dele que retirei muita da inspiração quando me dá para destravar a má língua, mas com todo o respeito. Nem eu chego aos calcanhares de Castrim como escritor e crítico, nem algum dia posso sequer sonhar em ser a pessoa que ele era. Era não só um génio, mas igualmente um excelente profissional e um grande ser humano.
Alice Vieira recordou como o companheiro era respeitado por todos, mesmo por aqueles com quem era por vezes um pouco mais "severo" - ossos do ofício. Deu como exemplo o professor José Hermano Saraiva, que apesar de ser de uma côr política simetricamente oposta ao crítico, existia entre eles uma relação de cordialidade e respeito. Dois saudosos cavalheiros, como já não se fazem mais. Castrim era militante do Partido Comunista Português, e numa imagem de arquivo recolhida já na parte final da sua vida, Castrim recorda a ditadura, a censura e o lápis-Azul, dizendo que mesmo vinte e tal anos depois do 25 de Abril, sentia passar pelos dedos "um relâmpago" quando escrevia, e que lhe dizia "epá não escrevas isto, que não vai passar". A simpatia partidária de Castrim foi usada por algumas das suas "vítimas" com menos "fair-play" como arma de arremesso. Isto diz bem da qualidade desses indivíduos; se na vida em sociedade se comportam assim, o que dizer do que fazem na televisão?
Fiquei ainda a saber que Mário Castrim escrevia outros textos além das suas críticas semanais. Chegou a escrever rábulas humirísticas para televisão, e uma peça teatral de Revista completa! E não só: pode verificar
aqui a obra completa deixada pelo Mário Castrim, o autor. Quando Júlio Isidro lhe perguntou como era viver com um homem que passava o dia em frente ao televisor, Alice Vieira explicou que vivia bem com isso, e que os próprios filhos de ambos sabiam que aquele era o trabalho do pai, e deixavam-no trabalhar em sossego. E era mesmo assim, Mário Castrim: um homem que se sentava horas a fio em frente à TV, ainda por cima a portuguesa, e nunca se fartava. Foi assim desde 1962, praticamente desde o arranque das emissões da RTP. Pode-se dizer que não podia sequer mudar de canal, mesmo que lhe apetecesse. Foi um personagem com quem só encontro paralelo com o crítico de cinema norte-americano Roger Ebert, desaparecido o ano passado. Gostei de recordar Mário Castrim, e que diabo, já passaram mais de dez anos desde que nos deixou. Para mim parece que foi há dias. As saudades são mesmo à prova do tempo.
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