Enquanto se discute a legalidade do "referendo" democrata, vou adiantando a minha tendência de voto, "just in case". É o habitual
artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Gozem bem o resto do fim-de-semana.
Apesar das vozes dissonantes e dos alertas que apontam para uma eventual legalidade, sustentados em meras interpretações pessoais, parece que os democratas vão mesmo avançar com aquilo que chamam de “referendo informal”, e cujo objectivo é tentar apurar com um maior nível de fiabilidade qual é a posição dos residentes de Macau quanto a uma eventual eleição do Chefe do Executivo da RAEM através do sufrágio universal e directo, no sistema de “um eleitor, um voto”, saindo vencedor o candidato que obtenha mais votos. Pelo pouco que já nos é permitido perceber, a votação será feita através de um sítio da internet, que ficará disponível durante dez horas nos dias de Domingo, dia 24 de Agosto, e Sábado, dia 30 – exactamente na véspera da eleição IV Chefe do Executivo propriamente dita.
Quer a data, quer a designação da iniciativa do sector pró-democrata, são entendidos pelos mais variados sectores que normalmente se colocam do lado do Executivo como uma “provocação”. De facto o momento escolhido pela Associação Novo Macau (ANM) e o seu recém-criado satélite Consciência Macau não podia ser mais controverso. Na noite do dia 31, Domingo, poucos minutos depois da Comissão Eleitoral o resultado da eleição do Chefe do Executivo, os democratas anunciarão o resultado da sua consulta.
Como se pode entender facilmente pelo “timing” dos dois anúncios, o segundo, o falso, poderá causar algum transtorno ao primeiro, o oficial – e tudo depende ainda quer da participação na iniciativa dos democratas, quer do resultado da mesma. Chamar-lhe de “referendo” tem feito correr muita tinta, pois nem os seus organizadores têm legitimidade para tal empreitada, como esta não vem sequer prevista em qualquer legislação vigente quer no território, quer na China continental, e como tal o seu resultado não terá qualquer carácter vinculativo. Se isso já seria motivo suficiente para relativizar o assunto, o mal-estar permanece. Mas porque razão, se esta votação virtual vale tanto como escolher entre lasanha verde e “al ragú” num sítio da internet dedicado à “pasta”?
Mais uma vez fica a impressão que o actual Executivo, que termina agora o seu mandato, insistiu em nāo medir o pulso à sociedade, e mesmo que não lhe agrade discutir questões do foro político que possam atrair as atenções quer das camadas da população mais adormecidas, quer do Governo Central, a verdade é que foram avisados inúmeras vezes desta possibilidade. Não é preciso ser um analista político especializado para perceber que a situação em Hong Kong causaria um efeito de “arrastão” em Macau, e quanto mais se bate na tecla da ilegalidade, da violação da Lei Básica ou da Constituição da R.P. China, que foi metida ao barulho vá-se lá saber porquê, competia aos dirigentes da RAEM esclarecer a sua população sobre a questão do sufrágio universal, ou de uma eventual alteração (ou aperfeiçoamento) do método da escolha do Chefe do Executivo.
O que mais poderia a opinião pública pensar, olhando para o actual processo de eleição do principal cargo público da Região Administrativa Especial, que tudo não passa de uma elaborada encenação, e onde o escrupuloso cumprimento das etapas do processo, o primado da legalidade e toda a cerimónia e burocracia envolventes produzem o mesmo efeito do que um jogral com uma corneta e um papiro anunciando o nome do vencedor? E assim ainda se economizavam uns milhões de patacas. Por outro lado os democratas apresentam um conjunto de moções, sendo a primeira a que coloca a seguinte questão: “Deverá o Chefe do Executivo da RAEM ser eleito por sufrágio universal em 2019”, com três opções de resposta, o “sim”, o “não” e o “abstenção”. Fico feliz por finalmente poder converter a minha opinião em algo quantificável, e espero participar da consulta, avançando desde já que o meu voto será no “não”. E tenho boas razões, nenhuma delas pessoal, para acreditar que o sufrágio universal seria uma catástrofe.
Alguns podem pensar que se não estou a favor do sufrágio universal, considero que o actual método de eleição do Cehfe do Executivo é o ideal, e que se deve manter após 2019, sem que se questione sequer a sua validade. É por causa deste extremar de posições que em Macau ninguém fala de política, todos têm medo do papão da política, e dá-se o efeito perverso desta demonização: não há, não se faz e não se pensa política, quando às vezes era necessário que houvesse, fizesse e pensasse. O método actual, explicado e bem na Lei Básica, seria perfeito em muitas legislaturas por este mundo fora onde a participação directa da sociedade civil na escolha dos seus representantes só tem causado transtorno, em vez de dar credibilidade à democracia no seu estado puro. Tivessemos em Macau uma maior independência dos diversos agentes do poder, e talvez em cada eleição surgissem dois ou três candidatos, e o Colégio Eleitoral que em última instância escolhe um deles adquirisse contornos de seriedade que actualmente não tem. A população não entende como se processa o acto, como se chega ao resultado final, e também não precisa de entender; tem quem trate disso por eles.
Sendo o método actual mais um pró-forma do que propriamente uma escolha, é normal que ao acenar de uma alternativa onde possa dizer de sua justiça, o eleitorado tenha pelo menos curiosidade em saber no que consiste, e que vantagens pode ter em relação ao actual, onde ficam de braços cruzados à espera que se anuncie o vencedor de uma eleição com apenas um candidato. Isto não quer dizer que o sufrágio universal seja a única saída, ou um dos dois, ou nada. E é nessa perspectiva que o actual elenco encara esta novidade: um desafio, ou mais do que isso, um ultraje. Nunca lhes terá passado pela cabeça que os democratas tenham ousado propôr o “referendo” após cansados de esperar pela promoção do debate público sobre algo perfeitamente legítimo: a evolução da sociedade, e a necessidade do sistema político de se adaptar a ela.
Escolher quem pensamos que melhor nos representa é uma ambição própria do ser humano, ainda mais antiga que a própria democracia. As sociedades ditas primitivas, nómadas e recolectoras, tinham os seus líderes, que ora impunham a sua autoridade pela força, e esta era reconhecida ou então contestada, levando eventualmente à sua disputa; ora era aclamado pelas suas capacidades de liderança, pela força ou pela coragem, ou através de outros expedientes – em suma, qualquer outra qualidade que os distinguisse dos restantes. Em Macau dá a sensação de que ainda estamos nesta fase, sem ofensa, mas não há outra explicação para o atraso que persiste no germinar de uma consciência civil e política. As eleições para os poucos lugares na AL dados a decidir pelo eleitorado sofrem de uma declarada falta de credibilidade, com a compra de votos e a manipulação dos resultados a ser tratada como “normal”, e vendo bem, só faria sentido o sufrágio directo depois de atingida a maturidade quer desta eleição, quer daquela que se vai realizar no dia 31 de Agosto.
Era ideal que o Governo abordasse estes temas com a população, em vez de lhe passar um atestado de incompetência. Claro que teria que ser uma aproximação mais diplomática, mais programada, e que no limite levasse o eleitorado a reflectir se o sufrágio universal seria uma boa solução caso fosse adoptado em Macau, e quem gostariam eles de ter como candidatos. Por enquanto não me resta senão agradecer aos democratas a oportunidade de materializar os meus receios: no vosso “referendo informal” vou votar no “não”. Obrigado na mesma.
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