A China pronunciou-se sobre o desastre aéreo da última semana, que vitimou os 298 passageiros a bordo de um voo da Malaysian Airlines que fazia a ligação entre Amesterdão e Kuala Lumpur, e que viria a ser abatido por uma bateria anti-aérea enquanto sobrevoava a Ucrânia. Eu sinceramente penso que aquilo que a China ganhou em "tomates" perdeu em coerência, e quando os "tomates" não vêm acompanhados de coerência, a isso chama-se "lata", e os tomates de lata não são tão frescos como os da horta. Um comunicado da Xinhua critica o "Ocidente" pela interferência na questão da Crimeia, acusando-os de reatar os conflitos depois de já ter sido declarado o cessar-fogo. Aqui por "Ocidente" entende-se tudo o que não seja a China, a Rússia, alguns países árabes, o Irão ou todo o que não esteja alinhado com os Estados Unidos. É um conceito político, não geográfico, e nessa perspectiva até o Japão pode ser considerado "Ocidente".
Ainda segundo a Xinhua, a Rússia "não tinha qualquer interesse em abater o avião", e de facto isto não é difícil de perceber, e não era preciso a Xinhua vir explicar. O problema aqui é que uma vez cometido o erro que provocou uma tragédia que vitimou centenas de inocentes, a Rússia e o seu presidente ainda se dão ao desplante de considerar isto um mal que se podia evitar não fosse a interferência externa na questão da Crimeia - algo que a China reitera. Um pedido de desculpas e uma posição clara na condenação da conduta dos rebeldes era o mínimo que se pedia de Putin. O disparo não foi na direcção do exército ucraniano, foi dirigido a um voo comercial cheio de passageiros que nada tinham a ver com esta questão. Pelo menos o governo holandês tem tido um comportamento à medida das circustâncias, não mudando uma vírgula ao discurso que responsabiliza os verdadeiros culpados da tragédia. Retirando a componente da política de tudo isto, qualquer pessoa com bom senso considera desumano e doentio o comportamento dos autores do atentado, e não esperaria outra coisa dos seus dirigentes que não a condenação incondicional dos rebeldes, pouco importa qual a situação das relações com Moscovo.
A leitura que a China faz deste incidente e do conflito em geral choca com o que tem vindo ser a sua posição em termos de política externa. Estamos aqui a falar de separatistas pró-Rússia num território que é, para todos os efeitos, ucraniano. No passado a China manifestou uma firme oposição a qualquer forma de separatismo, fazendo-o em questões bem longínquas da sua esfera geográfica, casos do Quebeque e da Catalunha. Ficou do lado de Moscovo, mesmo que apenas por uma questão de princípios, na questão da Chechénia, e bateu forte com pé por altura da declaração unilateral de independência do Kosovo. Em mente estavam, como é fácil de perceber, a situação no Tibete e em Xinjiang, ou até de Taiwan, se bem que sem a preocupação de impôr a soberania ao nível territorial. O que teria acontecido caso o avião da Malaysian Airlines tivesse sido abatido por separatistas "uygur" enquanto sobrevoava a província de Xinjiang? A China entenderia isto como um sinal para avançar com força sobre os rebeldes e ainda contaria com o apoio do Ocidente - pelo menos agia, ao contrário do que fez Putin.
Portanto onde não cabe a questão do separatismo, entra a da interferência nos assuntos internos, e condam-se que a participação das democracias ocidentais, quer na procura de uma solução pacífica ou apenas uma mera mediação, quer as sanções impostas após decisões tomadas à revelia de tratados internacionais e que resultem em baixas civis ou catástrofes humanitárias. Não é segredo para ninguém que Pequim admira a postura de Putin; a forma como controla o aparelho de estado, desde a economia à política externa, garantindo uma zona tampão à volta do seu território,a mão-de-ferro com que lida nas questões de segurança interna, de como mantém a oposição domesticada, mantendo uma enorme popularidade e sendo reeleito mandato após mandato, mesmo sujeito às regras de uma democracia normal, e sobretudo dois aspectos que a própria China considera de importância vital, mas onde Putin se tem conseguido exceder: o separatismo e as interferências externas. O presidente russo não negoceia com terroristas, recusa tudo o que considere interferência externa, mesmo em forma ajuda ou de apoio logístico e humano, e não se compromete com qualquer pacto que pense ir contra os interesses do seu país.
Russos e chineses têm uma história quase tão longa quanto os quilómetros de fronteira que os dividem, e apesar de nenhuma destas nações poder dizer que o caminho foi fácil, ambas são hoje potências no quadro geopolítico actual. Uma cooperação entre as duas pode trazer benefícios mútuos, tanto pela identificação de "inimigos" comuns (separatismo, terrorismo, oposição interna, ingerência externa), quer pelo facto de nunca terem entrado directamente em disputas territoriais - talvez porque o expansionismo russo foi sempre na direção da Europa, e a China só se unificou em meados do século XX. A única vez que se encontraram foi exactamente no contexto da implantação da R.P. China, com a antiga URSS a "apadrinhar" mais uma filial do marxismo-leninismo que inaugurou, e mais tarde ficaram de costas voltadas por questões ideológicas - como se a gente acreditasse. Mas se é passível de existir debate sobre qual a foice que melhor corta ou martelo que melhor malha o ferro, onde perseguem um objectivo comum que só tem uma forma de expressão, que é esta: $. E nesse contexto compreende-se que existam dois pesos e duas medidas. Basta olhar para o todo, e de vez em quando ignorar os detalhes.
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