Afonso Carrão Pereira, ribatejano da tribo dos cartaxenses, conhecidos pela sua elevada tolerância ao tintol, a que se habituam antes de aprender a falar, reside em Macau há 30 anos. Não, Macau ganhou o Afonso há 30 anos, assim está bem. Depois de fazer a sua formação na hotelaria, passando pelos iniciados, juvenis e juniores, chegando mesmo a treinar às ordens do mítico Chefe Silva, Afonso iniciou a sua carreira profissional na Rua Central, onde permaneceu 24 anos num espaço conhecido de todos os aficionados da gastronomia lusitana, e onde brindavam (literalmente) às jogadas de fino recorte técnico e sabor inconfundível do mestre. Encantava com meias doses e doses inteiros de coelhos que tirava do tacho, os remates ora com o chispe de coentrada, ora com a perna de vitela, e os únicos frangos que dava eram servidos na púcara. Indiferente à crítica, recebia a mais ilustre clientela, e de sítios longínquos onde a sua fama chegava (Hong Kong, por exemplo) vinham ao estádio Afonso III os amantes do bom garfo, ver com os seus próprios olhos e saborear com a sua própria boca as criações do artista.
Como tenho a sorte de morar perto da Rua Central, não tinha o privilégio de assistir da janela às exibições do astro, mas por um preço ainda mais baixo que o de um bilhete para o futebol, levava a família a assistir aos "slaloms" culinários de Afonso Pereira. Foi numa dessas vezes, há um bom par de meses, que senti algo diferente quando entrei na catedral da comida portuguesa em Macau. O recinto mal iluminado, as bancadas tinham sido retiradas, e o "craque" estava sentado numa mesa ao fundo com o resto da sua equipa - temi uma lesão que comprometesse a carreira do meu ídolo. Perguntei-lhe o que se passava, e contou-me que o estádio tinha sido vendido, e o clube não poderia mais utilizá-lo. Num estado entre o choque e a revolta, preparava para amaldiçoar esses patos-bravos do imobiliário, e lamentar que o grande Afonso não os tivesse apanhado a jeito e os metido no assador, decorados com rodelas de laranja. Ao perceber o olhar triste de um fã de longa data, prometeu que voltaria em breve a encantar as audiências com as suas fintas na cozinha. "Depois digo-te", afirmou com aquela classe própria dos predestinados, a quem título fugiu mas na época seguinte há sempre outra oportunidade.
E de facto assim foi, e na última segunda-feira fiquei a saber através de uma peça no Ponto Final que o grande Afonso se mudou de armas e bagagens para o Café Xina, clube do empresário Pedro Ascensão, que investiu neste reforço com o objectivo de lutar pelo título. E nem foi preciso esperar mais tempo, pois com a fome com que estava, não a de bola mas a outra, fui logo no mesmo dia, comovido com a perspectiva de matar saudades. E ainda por cima numa casa que conheço bem, com uma vizinhança simpática, que se ainda não conhece o Afonso, vai ficar rendido ao seu talento. O perímetro de jogo é sensivelmente mais reduzido, talvez do tamanho do anterior mas sem a bancada superior, e apesar de ainda estar novinho em folha, não tardará muito para que o brilho do Afonso lhe dê o seu ar característico, e voltará a ser a sua "casa", onde é imbatível.
O Afonso ainda se está a adaptar à nova equipa, falta-lhe ainda o "playmaker", uma grelha que lhe faça as assistências para as suas célebres espetadas de vitela e bacalhau à lagareiro, mas já se nota que continua a concretizar o bife à café como mais ninguém, e o café continua a ser a "arma secreta", e não poucas vezes marca o golo da vitória nos descontos. Fiquei aliviado. Nem os defesas carniceiros do imobiliário, que tantos mandaram para o estaleiro com as suas entradas especulativas duras dirigidas aos joelhos e à canelas do pequeno e médio comércio, conseguem deter o "master-chef" do Cartaxo. É quem se mete com o Afonso, leva, e sai bem servido com uma goleada.
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