segunda-feira, 28 de julho de 2014

Vocês em Macau...


Numa das vezes que fui a Portugal de férias, em 2004 se não estou em erro, lembro-me de uma conversa com um dos amigos da minha irmã, que tal como ela é uns bons nove ou dez anos mais novo que eu - eu estaria à porta dos 30, e ele mal chegado à casa dos 20, portanto. Com o ar de quem tudo sabe próprio de quem completou a adolescência, apesar de "lhe faltar uma cadeira para acabar o 11º ano", afirmava que "vocês em Macau têm a papinha toda feita". Isso mesmo, "a papinha toda feita". É chegar, ver e vencer, e só por algum mal-entendido estranho ou erro de tradução é que ninguém se apercebeu disso lá no rectângulo, senão tinhamos a população de Macau a aumentar subitamente na ordem dos dez milhões, e a de Portugal ficar reduzida a zero. Não exageremos, pois por lá ainda há uns 100 ou 200 mil que andam contentes da vida, ora porque fazem parte do elenco do grande saque nacional, ou porque são teimosos e parvinhos, e já lhes custa ir até à aldeia vizinha, quanto mais até ao outro lado do mundo.

Mas a convicção daquele jovem cidadão do mundo que nunca foi além de Badajoz ou com sorte passou um mês com os primos em Istres, na França, é a mesma de muitos portugueses que só ouviram falar de Macau, e pensam que isto é e sempre foi uma maravilha, e que quem vem para cá ou passou aqui muitos anos e mais tarde regressou a Portugal "teve cunha", e eles "se quisessem também tinham", mas são "gente séria", e "trabalhadora", que "não acredita em contos da carochinha". Imagino como devem ter sofrido alguns dos ex-residentes de Macau que optaram pela integração, e foram obrigados a aturar um certo tipo de burgessos e sopeiras, que primeiro enchem-no de perguntas do tipo "como é que era lá em Macau?", e mesmo que o entrevistado produza um relato fiel da vida na agora RAEM, arrisca-se a que lhe cortem na casaca - sempre pelas costas, claro - e mais cedo ou mais tarde começam a tratá-lo entre eles pela alcunha "não-sei-quê de Macau", ou "não-sei-quantas de Macau". O melhor mesmo é exagerar, ou contar histórias mirabolantes e mentir com os dentes todos. Se vai dar ao mesmo, que diferença faz?

Mas para quem tem de Macau a imagem que lhes foi transmitida por aqueles que passaram pelo território há vinte anos, saiba que isso é o mesmo que ter um globo terrestre ou um "mapa mundi" onde ainda se podem ver a Checoslováquia e a União Soviética. Muita coisa mudou desde o tempo em que chegavam aqui os "dândis" em comissão de serviço, com casa paga, motorista, emprego garantido para a mulher que se juntaria alguns meses depois, fosse esse o caso, e bilhetes de borla para Portugal pelo menos uma vez por ano. Se foi um dos filhos destes "quadros", que passou aqui parte da adolescência e depois de ir para a Universidade nunca mais pôs cá os pés a descrever Macau, ainda pior - nem toda a juventude "tinha mil patacas para gastar ao fim-de-semana", vinte contos na moeda antiga, que nos anos 90 era bastante dinheiro. Para esses o exílio foi um carrossel, um brinquedo, mas pouco importa se foi em Macau ou noutro sítio qualquer.

Portanto aqui vão umas emendas aos inúmeros dogmas que foram criados sobre a vida dos portugueses e outros expatriados em Macau, e que para quem não acompanhou a evolução da nova realidade, continuam actuais. Assim permitam-me que vos corrija cada vez que depois de "vocês em Macau" se siga uma ideia feita que não tem nada a ver com a actualidade; deixem-me que vos ofereça um atlas actualizado, com as novas repúblicas da ex-URSS e da ex-Jugoslávia incluídas, bem como checos e eslovacos cada um no seu cantinho, onde estão muito bem.

"Vocês em Macau" têm facilidade em arranjar emprego, sendo portugueses.

Já foi assim, mas vai sendo cada vez menos verdade que a nacionalidade portuguesa é meio caminho andado para garantir um emprego em Macau. Antes de 1999 bastava ser cidadão nacional português e uma declaração de que residia no território há mais de três meses confirmada por duas testemunhas para se obter o BIR, mas hoje em dia não só os critérios são mais rígidos, mas há também uma demora processual na autorização da residência que ninguém consegue explicar, e nem as autoridades justificam - é um mistério.

"Vocês em Macau" não se pode dizer exactamente que "trabalham", quer dizer, "vão ao emprego"...

Essa é talvez uma das maiores diferenças em relação ao período da administração portuguesa. Trabalha-se, sim, e quem está no sector privado nem pense "encostar-se à sombra da bananeira". Na hora de distribuir as atribuições, os portugueses não são menos que os outros.

"Vocês em Macau" têm como que "um desconto", ao contrário dos chineses ou de outros estrangeiros.

Tal como na presunção anterior a esta, nada disso. Quem está a contrato e "pisa na bola" vai parar ao olho da rua com a mesma facilidade, seja ele português, chinês, italiano ou outro qualquer. Chefes chatinhos como aí também há por estas bandas, com a agravante de ainda precisarmos de atender ao aspecto cultural, e para quem não domina a língua, pior ainda.

"Vocês em Macau" ganham bem...em "pataquinhas".

O mito da árvore das patacas é uma coisa do passado. Essa proverbial árvore, se realmente existiu , já há muito que secou; é verdade que se ganha melhor que em Portugal para as mesmas profissões , se fizermos o câmbio, mas as despesas são muito mais que no passado. A habitação, por exemplo, tem um peso na ordem dos 30-40% da despesa total, ou mais para quem opta por viver sozinho ou dividir a renda por menos pessoas. Quem tem casa própria ou atribuida pela empresa onde trabalha está mais à vontade, mas não deixa de sentir a subida galopante da inflação em muitos dos bens de primeira necessidade.

"Vocês em Macau" têm uma vidinha tranquila. É tudo perto.

Sim, de facto é possível a muitos (como eu próprio) deslocar-se a pé para o emprego, apesar de já ter sido mais agradável, quando não era inevitável andar aos encontrões e aos empurrões, já para não falar do calor e da humidade. Para quem precisa de apanhar transporte ou conduzir, as distâncias também não são as mesmas do que entre Lisboa e a Margem Sul, mas a qualidade do serviço de transportes deteriorou-se, e o trânsito passou a ser um dos problemas que demoram a resolver.

"Vocês em Macau" não precisam de se preocupar com a questão da segurança, dos assaltos...

Apesar dos números da criminalidade terem vindo a aumentar, ainda é possível andar a qualquer hora e em qualquer sítio sem recear os assaltos, pois aqui não existem bairros de lata, ou "problemáticos", como existem em Portugal. No entanto começam a surgir certas preocupações com algumas liberdades que em Portugal são praticamente "intocáveis", casos da liberdade de expressão, de associação, de opinião, e mesmo os critérios usados no mecanismo do despedimento começam a deixar para segundo plano o factor da "justa causa". Ah sim, e as penas pelos delitos relacionados com droga são muito mais pesadas que em Portugal - aqui não há lugar a certas "brincadeiras".

"Vocês em Macau" têm os casinos, que resolvem todos os problemas de fundo, enquanto aqui os políticos são uns aldrabões e não mexem um dedo.

Os casinos são uma fonte de receitas que muitas economias invejam, sem dúvida, especialmente as micro-economias, como é o caso de Macau. O problema é que não se sabe muito bem por onde andam essas receitas, que batem recordes atrás de recordes, e de como não estão a ser usadas para resolver problemas de longa data que têm vindo a agravar-se cada vez mais. Penso que isto já diz tudo quanto à qualidade dos políticos.

"Vocês em Macau" têm uma data de países à volta, praias paradisíacas, ilhas de sonho...é só passear!

É verdade, e é muito mais fácil a alguém ir passar um fim-de-semana prolongado à Tailândia ou às Filipinas do que a um português fazer o mesmo em Bruxelas ou Amesterdão, que ficarão mais ou menos à mesma distância de avião. E é muito mais barato, também. Mesmo assim não se queixem, pois se vivem no litoral, estão a meia-hora de carro de qualquer praia decente, enquanto para nós é necessário apanhar um avião.

"Vocês em Macau" agora queixam-se tanto...então o que estão ainda aí a fazer?

Parece uma provocação, ou uma pergunta parva, mas é pertinente. Há os que se fartaram e se foram embora, há os que não gostam mas não têm outra escolha porque em Portugal têm as portas fechadas, e há os que mesmo tendo a opção de regressar ou não, criaram aqui raízes, casaram com pessoas de cá, tiveram filhos e fazem aqui a sua vida. E para esses "queixar-se" quando as coisas correm mal é o mesmo que toda a gente faz quando quer o melhor para a si e para os seus. Esclarecidos?

Mas melhor que ouvir falar, e ainda por cima confiar em testemunhos que nada têm ver com o Macau do presente, era vir cá ver como isto é. Se não vos dá jeito, se é longe, caro, não vos interessa, ou não conhecem aqui ninguém e portanto acham que não vale a pena, paciência, só que antes de afirmarm com essa dose de certeza que aqui é uma espécie de "mundo do faz-de-conta", o melhor é informarem-se primeiro. Ouviram, ó "vocês em Portugal"?



4 comentários:

Ana disse...

Ó daqui de Portugal, aí como aqui ou em outro sítio do mundo existe o bom e o mau. Nem aí são mais sacrificados, nem aqui. Aliás, vendo as coisa por esse prima Leocardo este seu post é tipicamente Português…”coitadinho de mim/nós”. Continue a dar-nos os seus relatos como até aqui sempre ajuda a dar a conhecer o Macau de hoje. Bjs

Anónimo disse...

Acho que devias ir mais vezes a Potugal.

E acho que as penas para as Brincadeiras ainda sao leves, nao estou bem a ver o que existe de mal nisso.

Anónimo disse...

Pois é meu amigo, não tens o céu azul deste cantinho... O cheiro a peixe assado no carvão junto à praia...
E tanta outra coisa... :)
Aí não há o teu FCP, nem o meu MÁGICO XADRÊZ que este ano vai voltar a espalhar a sua magia!
Abraço do NORTE.

Leocardo disse...

Ah, ah, morcôm! Boa sorte na luta pela manutenção ;)