Finalmente aconteceu. Depois de anos de deboche, libertinagem e adoração a Lúcifer, fui expulso da casa de Deus. De nada adiantou serrar os chifres, ocultar a cauda, ou investir em calçado especial que não deixasse marcas dos meus cascos de bode - não sou mais bem vindo à Igreja da Sé. Pelo menos é isso que dá a entender o novo aviso colocado à entrada da principal igreja católica do território, que reserva o direito de acesso apenas a católicos. Esta é uma medida ainda mais radical do que a implementada em inícios de Junho, que vedava a entrada a turistas, e que podemos recordar
neste artigo que dediquei ao assunto. Não sendo eu um turista, não me senti incluído nesta triagem que a Diocese pretendia fazer quanto ao acesso à igreja, mas sendo não-católico, senti o "toque". Não que um templo cristão seja o tipo de local que me dê vontade de entrar, mas há quem não sendo praticante ou sequer um crente, encontre aqui um local tranquilo onde se pode refugiar e ficar a sós com os seus pensamentos, reflectir, e até quem sabe procurar no cenário ou nas imagens que o rodeiam algum conforto ou inspiração. Qualquer pessoa com dois palmos de testa entende que se a Igreja Católica tem como objectivo trazer a si novos membros, interditar o acesso aos seus locais de culto não é propriamente uma medida eficaz.
Mas apesar da mensagem pouco hospitaleira que o aviso transmite, esta é dirigida a um grupo específico, e não à generalidade dos gentios que procurem orientação no local destinado à prática da fé cristã; continua a ser bem vindo quem vier por bem. Segundo o Padre Luís Sequeira (que eu adoro, e para quem envio desde já um abraço) a ideia aqui é afastar um certo tipo de curiosos, nomeadamente os turistas do continente, que têm aparecido em Macau cada vez em maior número. Esta "horda de invasores", que atravessa a fronteira das Portas do Cerco com mais frequência devido à política dos vistos individuais implementada pelo Governo Central, tem uma certa dificuldade em compreender o conceito de "culto", uma vez que na China existem restrições nesse sentido. Perante uma igreja, que para eles é apenas mais um monumento, ou uma simples atração turística, entram e comportam-se sem respeito por um protocolo que desconhecem de todo. Basta colocarmo-nos na posição deles, e questionar o que pensarão os seguidores do budismo quando na condição de turistas visitamos os seus templos, fotografamos os seus ídolos, e adoptamos um comportamento que podemos até considerar humilde e respeitoso, mas que pode estar repleto de vícios dos quais nem fazemos ideia, e que os praticantes dessa crença podem considerar ofensivos, mas a que se resignam em nome da indústria do turismo, vital para a sua sobrevivência.
Antes que pensem que estou a dar exemplos de choque cultural para justificar o comportamento de alguns turistas que a Igreja prefere manter à distância, deixo bem claro que não é essa a intenção. Qualquer pessoa com o mínimo de discernimento, cultura ou civilidade entende o que se passa ao seu redor quando entra num ambiente que não lhe é familiar. Caso estes indesejáveis para a Diocese fossem parar ao meio de um desfile de uma escola de samba do Rio de Janeiro em pleno Carnaval, iam perceber facilmente qual o comportamento a adoptar, sendo permitido, a até recomendável, que pulassem, dançassem, cantassem ou berrassem, conforme o que lhes fosse mais conveniente. Posto isto fica difícil de compreender a razão pela qual não conseguem diferenciar um local onde as pessoas que o frequentam estão em plena introspecção, e mais ninguém está a comer, beber, tirar fotografias ou falar alto, que são algumas das condutas de que os crentes os acusam. É possível que após várias aproximações mais suaves, a igreja tenha chegado a um ponto em que as queixas da parte dos seus fiéis os levasse a tomar esta atitude tão radical, onde mal alguém que entra é imediatamente avisado que o local é reservado apenas ao culto, e aos seus seguidores. E por falar em radical, eu próprio estive várias vezes em locais de culto islâmicos, vulgo mesquitas, e foi-me permitido circular em todo o perímetro com excepção da sala reservada à oração - e nem me sinto melindrado, pois esse local consiste apenas de um chão alcatifado e uma parede plana que estará supostamente virada para Meca, cidade sagrada do Islão.
Mas o conteúdo agressivo da mensagem é também explicado pelo Padre Sequeira, que pede desculpa e tudo, justificando-se com um capricho da tradução - só assim os intrusos entendem e deixam os crentes praticar o culto em sossego. Isto leva-me a pensar que um simples "Local de culto, silêncio por favor" e a presença de um segurança que faça cumprir a norma terá sido tentado, mas sem resultados, o que dá a entender que a situação é grave. Deixando de lado o trocismo a que uma situação tão surrealista como esta convida, tenho consciência de que o aviso não se dirige a mim ou a outra pessoa que se saiba comportar numa igreja, mesmo que não pratique a religião. Sou agnóstico mas culturamente apreendi os preceitos cristãos da sociedade em que me inseria, e não rejeitava ou desprezava quem optasse por viver mais ou menos de acordo com essas condutas, em quem as levasse mais a sério - curiosamente aqui o respeito já não era tanto da outra parte, e muitas vezes me apontaram o dedo por não professar uma fé. Portanto nada para mim é estranho, e sei que não me devo comportar numa igreja da mesma forma que noutro local onde me sinta no direito de permanecer e deixar claro que não sou crente. Numa igreja, tal como numa casa que não é minha mas onde fui recebido, comporto-me como um convidado, e vou até onde me é permitido ir.
Claro que me revolta saber que entre os comportamentos censuráveis se incluíam vários que interferiam com o culto alheio. Achei até bizarro quando o Padre Sequeira contou que alguns dos turistas se juntavam na fila dos crentes que iam receber a comunhão, que como se sabe é um privilégio exclusivo de quem é baptizado. Tenho dúvidas quando diz que "consegue distinguir" alguém que é baptizado de alguém que não o é, mas interpreto isto como uma conclusão feita após observar mais atentamente quem não sabe o que está a fazer, ou não demonstra uma percepção do todo que o rodeia. Sei que a mim, por exemplo, não me seria negada a hóstia, mas porque carga d'água havia eu de participar de um ritual associado a algo que não me diz nada? Não aceito sequer que me obriguem a benzer-me quando entro numa igreja, ou que me ponha de rabo para o ar se visito uma mesquita. O meu respeito limita-se a tirar os sapatos quando a ocasião me obriga a tal e não me armar em parvo no local onde os outros praticam a sua religião.
Mas se não sou católico nem professo outra religião, o que estou eu a fazer, entrando assim nas igrejas, mesquitas, pagodes ou templos hindus em vez de deixar em paz as pessoas que acreditam? Pela beleza do local, naturalmente, e é nesse particular que se torna oportuna a opinião do arquitecto Rui Leão, membro do conselho para o património da RAEM. Portanto é dado adquirido que quem não entre numa igreja com o propósito de praticar o culto, pode fazê-lo por interesse artístico. E de facto há locais de culto lindos, que vale a pena visitar, observar e porque não, tirar umas fotografias. E aí é que persiste a minha dúvida: se não estiver a decorrer uma cerimónia religiosa, é-me permitido recolher imagens do local? E gostava de uma resposta oficial, e não de uma mera opinião fundamentada no "respeito" e não-sei-que-mais, pois aí há quem considere isso um ultraje, e há quem não se importe. Mas concluíndo esta longa dissertação, Rui Leão diz "entender" a posição da Diocese de Macau, apesar de achar o texto da mensagem "inadequado" - é caso para dizer "para grandes males, grandes remédios". E aqui o mal está perfeitamente identificado: os turistas do continente, que entram onde muito bem lhes apetece e fazem o que muito bem entendem na via pública, ignorando o facto de ser um espaço público, e muitas vezes que estão de visita, e que a cidade não foi montada à pressa para eles se divertirem, e que vive aqui gente que tem a sua vida, trabalha, e por vezes está com pressa, e nas tintas para se eles estão a procurar o melhor ângulo para tirar um fotografia.
Causa identificada portanto, e a solução? Esta não passa tanto pelo número de visitantes, mas pela capacidade que temos em os receber. Se quem permite que eles venham nesta quantidade, certamente que pensou onde os acomodar, ou em organizá-los de forma a que a vida dos residentes se processe normalmente, de forma paralela a quem nos vem visitar, e por isso gostariamos de ter prazer em os receber. Mas não, e esta modalidade do "todos ao molho e fé em Deus" vai sendo suportada por uma certa franja desses turistas, uma minoria, que procura no território um detergente eficaz para eliminar umas manchas indesejáveis numa certa roupa que trazem, e que se distingue por uns convidativos tons de verde - entendem onde quero chegar, certamente. O património está aqui para ser visto, visitado e apreciado, e só é necessário que se criem as condições para que não surjam episódios infelizes como este da Igreja da Sé. Os turistas vêm a Macau visitar os pontos de interesse, como nós fazemos quando visitamos outro local, e tal como nós não é relevante saber quantos outros turistas vamos lá encontrar - queremos ir na mesma. Mais do que uma interdição aos bárbaros que interferem com o culto, que este aviso sirva para lembrar que este é um dos muitos problemas que há pela frente, e que urge resolver. Ignorá-lo só pode trazer resultados indesejáveis, como aliás tem ficado provado.
1 comentário:
Quase que até me arrisco a dizer que assino por baixo. De facto devia-se seguir o exemplo do santuário de Fátima, com seguranças que fazem cumprir as directivas. Quando está a haver Missa, coloca-se a placa que informa os turistas em algumas línguas (cadê o português que é supostamente uma língua oficial de Macau nessa placa que está a provocar tanto sururu?) que está a decorrer uma cerimónia e com um ou outro segurança ali por perto para "controlar" e pronto. Assim que a "costa" estivesse livre, aí sim, dar-se-ia a possibilidade de circulação aos curiosos para fotografarem, apreciarem a beleza do local, etc. mas sempre com modos de gente civilizada (é também para isso que servem os seguranças).
E você deu uma boa resposta por parte de um irreligioso que procura uma igreja. Há registos de conversão que começam precisamente assim.
Abraço.
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