quinta-feira, 24 de julho de 2014

Retribuição com lucro


A notícia foi adiantada ontem no Telejornal da TDM, e confirmada hoje na imprensa em português do território, e como num golpe de cintura, o noticiário anunciou esta noite uma mudança de planos. Fiquei atordoado com todo este diz-que-disse, foi-não-foi, não-há-afinal-há. Resumindo, parece que alguém com a mania das espertezas e sem nada de melhor para fazer andou a brincar com a organização do Festival da Lusofonia, uma espécie de "Woodstock" anual para a comunidade lusófona em Macau. Ontem estalou o verniz ao anunciar-se a possibilidade do evento não se realizar este ano, o que não constitui novidade, pois há sempre um ano ou outro onde as queixas quanto às dificuldades em organizar o festival deixam os seus organizadores a pensar se vale mesmo a pena todo o esforço, ainda por cima quando os discursos oficiais apontam para a sua importância, e não se cansam de elogiar a encorajar a iniciativa.

Este ano o IACM anunciou à Associação das Comunidades Lusófonas, que está encarregada e organizar o Festival da Lusofonia, que "as regras iam ser alteradas". Assim a semana da Lusofonia passaria a realizar-se depois do Festival e não antes, como tem acontecido sempre, os convidados musicais do Fórum Macau não seriam autorizados a participar, e o próprio IACM convidaria dois grupos - sem indicar quais - para actuar no palco da Lusofonia. Mais do que uma ingerência, isto mais parece um insulto. O Festival da Lusofonia, a vertente dos comes e bebes e do convívio que tem lugar no Largo do Carmo, na Taipa, só faz sentido como remate da semana dedicada às exposições, conferências e toda essa face mais formal da semana cultural - fecha com chave de ouro, por assim dizer. Os convidados musicais do Fórum Macau, e isto de não estou equivocado, são sobretudo os artistas locais, que não sendo a principal atracção, vão mantendo o local animado com música e exibições de dança, de capoeira, de tudo um pouco. Quanto a essa imposição dos dois grupos escolhidos pelo IACM, nem sei o que dizer. Será que a edilidade da RAEM criou alguma comissão especializada no tema da Lusofonia e não nos disse nada?

Afinal não foi nada. Parece que o IACM e a organização chegaram a um consenso, e o Festival da Lusofonia não está em risco, pelo menos como estava há um dia atrás, o que abriu a porta a todos o tipo de especulação. A primeira coisa que me veio à cabeça, e acredito que outras pessoas que gostam do festival pensaram o mesmo, foi: porquê criar obstáculos a que se realize? O Festival é uma das poucas ocasiões em que Macau mostra as suas qualidades mais originais e únicas, de ponto de encontro de culturas, do oriente e do ocidente, e materializa todas estas valências que de outra forma nunca passa do papel e das boas intenções dos discursos oficiais, que repetem a mesma ladaínha que lhes fica sempre bem, mas que não mobilizam esforços ou meios para que se concretize. Macau foi uma província ultramarina portuguesa até há 15 anos, e esse facto não é uma memória turva de um passado distante. Mesmo os jovens residentes com menos de 20 anos têm plena consciência dessa realidade, e muitos interessam-se em saber mais sobre o assunto - e louvados sejam, pois pobres os que pensam que Macau apareceu por geração espontânea em 20 de Dezembro de 1999.

O Festival realiza-se durante um fim-de-semana por ano, três dias apenas, e com mais intensidade no período da noite, depois do jantar, e não incomoda ninguém. O espaço onde tem lugar é afastado de zonas residenciais, numa área classificada como património, as casas museu, não altera num azulejo que seja a integridade desse património, e não há registo de incidentes graves que levem seja quem for a questionar a sua realização. Se a intenção do IACM foi de mandar uma mensagem no sentido de que o Festival da Lusofonia "incomoda", mexe com certas sensibilidades, e há quem não o aprove por razões patrióticas, de identidade, ou que o seu fim poderá ter um carácter simbólico de confirmação de soberania, foi infeliz. É que este evento nem chama sequer a atenção dos mais distraídos que de passagem dão com uma manifestação cultural que desconhecem, e que os confunde. Nem tive conhecimento de qualquer queixa, quer do IACM, quer de particulares, de que os participantes do festival deixam o local sujo, ou danificam qualquer estrutura pública. Em suma: não chateiam, nem obrigam quem que seja a lá ir. É quase impossível ir lá parar "por acaso".

E quem não se enquadra no grupo da Lusofonia e visita o festival sai dali sempre com uma boa impressão. E nunca seria de outra forma, uma vez que há música, há alegria, há confraternização, e sente-se isso no ar, é quase contagiante. Se os locais que espreitam o festival por curiosidade não parecem sentir-se muito à vontade isso deve-se talvez a um certo choque, por não estarem habituados a tanta descontração e sentirem-se em minoria num ambiente onde existe tanta diversidade. Quem é que não gosta de comer, beber, dançar e rir, rodeado de um "tutti-fruti" cultural com primazia para os climas tropicais, onde as gentes são despidas de preconceito ou limitam as vestes a uma tanga? Quem nasceu, cresceu e sempre viveu num meio onde existe o primado da tradição, são muitos os preconceitos e se ensina a humildade e o respeito pelos costumes, vai pelo menos identificar uma agradável diferença, e não se sente agredido. Os que defendem que Macau "é China, e não Portugal", e acha que este tipo de "reposição de um passado humilhante" não tem aqui lugar, o melhor então é ficar na caminha, e esperar pacientemente para fazer de ovelha na Marcha do Milhão ou algo do género.

O que dá a entender com esta pequena e (felizmente) breve confusão é que existiu um mal-entendido que tomou uma proporção dantesca. Macau só tinha a perder se minasse as intenç­ões dos organizadores de um evento que ainda é dos poucos que vai dotando o território de uma particularidade que o distingue. Pode ser que haja por aí quem pense seria suficiente ter os casinos e em Novembro realizar o Grande Prémio, esse sim, um enfarta-brutos que justifica qualquer despesa que se faça com ele, e onde se aproveita para fazer as habituais "contas de merceeiro", ainda por cima com o aval de uma entidade mundialmente reconhecida como a FIA. Ora aí está um cartaz turístico de excelência, mesmo que o único contributo do território seja o asfalto, pois mesmo a organização deixa uns poucos de cá a brincar às corridas, mas quem trata das coisas sérias são os que vêm de fora. E no fim de contas, ainda bem que isto aconteceu, pois não só o IACM cedeu às condições da Associação das Comunidades Lusófonas, como reveu o seu contributo, em alta. Há males que vêm por bem.



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