sexta-feira, 25 de julho de 2014

Faites vos jeux



Soa o gongo mais um assalto. Os democratas provocam, o Governo reage, os democratas provocam outra vez, o Governo volta a reagir, e quanto mais os democratas sabem que o Governo reage, mais provocam. A polémica do "referendo informal" que as três associações encabeçadas pelo Novo Macau vai ganhando a intensidade de um "thriller" hitchockiano, com o IACM a negar aos organizadores da consulta a ocupação de qualquer lugar público para realizar a sua promoção. Razão? A mesma de sempre: "é ilegal, vai contra a Lei Básica e a Constituição da R.P. China" - e vão mesmo mais longe, proibindo "quaisquer actividades relacionadas com o referendo". Jason Chao diz que "existe um plano B", e que a iniciativa terá lugar de qualquer jeito, e deu entrada em Tribunal de uma queixa contestando a validade da decisão do IACM, e estes demoraram na devolução dos documentos do pedido, e o democrata acusou-os de tentar pedir que os documentos sejam entregues nos tribunais em tempo útil, "porque têm medo de perder".

Neste braço-de-ferro dá a entender que os democratas levam alguma vantagem, e mesmo os maiores especialistas na área do Direito defendem que não se pode falar em ilegalidade, mesmo com alguns "mas...". Pois é, mas...nada, e deixando transparecer que a principal preocupação não é com a ilegalidade do acto, mas com as possíveis consequências políticas do mesmo, os promotores do "referendo" têm o Executivo entre a espada e a parede, e revelam uma tranquilidade que dá a entender terem a certeza de ter a lei do seu lado. Com este recurso ao terceiro braço do sistema, os orgãos judiciais da RAEM, deixam uma batata quente na mão dos magistrados, que se lhes dão razão fazem o Executivo "perder a face", e caso confirmem a tese da ilegalidade, vão precisar de a fundamentar com argumentos legais que podem nem sequer existir, ou serem passíveis dessa interpretação. E tudo parece indicar no sentido dos democratas não deixarem cair a questão, e recorrerem até onde lhes for permitido.

A persistência na tese da ilegalidade do referendo parece neste momento ser mais uma questão de princípio do que de convicção: foi à que se agarraram no início e nem uma reflexão mais cuidadosa foi posta como possibilidade. Foi não, não, não e não. O jurista António Katchi declarou hoje ao Jornal Tribuna de Macau que não só há nada de ilegal na realização do "referendo", como não é sequer ilegítimo que assim o designem, pois "deixaram claro desde início não se tratar de um referendo oficial". Para o docente do Instituto Politécnico a tentativa de impedir a realização da iniciativa "pode constituir crime de coacção grave", e de facto muito têm os críticos apontado para eventuais "perigos" da realização do acto, mas sem revelar quais, e que consequências poderá isto ter. Tivessem uma base legal sólida que suportasse a ilegalidade do "referendo", e já a teriam usado para inviabilizar à partida - nem a página oficial que os democratas criaram para a sua divulgação ficaria de pé.

E de facto ainda a procissão ia no adro e já Jorge Neto Valente havia deixado claro que a tese da ilegalidade seria estéril, improdutiva e até perigosa. O presidente da Associação dos Advogados demonstrou ser uma pessoa firme de princípios, pois apesar de ser evidente que não aprova a iniciativa dos democratas, manteve a sobriedade e analisou o caso do ponto de visto jurídico, a sua especialidade. De facto a Lei Básica fala "do que é", e não "do que não é". Isto levou a uma discussão sobre a relação entre o não-legal e o ilegal, ou seja, tudo o que não é legal, ou seja, não está previsto ou regulado na lei, não é necessariamente ilegal - e isto abriria um precedente perigoso, e não é preciso ter conhecimentos jurídicos para entender isto: tudo é permitido se não estiver proibido por lei, e os vacatio legis que requeiram a produção de legislação não têm efeitos retroactivos, e neste caso particular não se aplicaria qualquer analogia da lei - pelo menos da lei de Macau, uma vez que é um caso único.

E é aqui que entra a opinião de Gabriel Tong, também ele jurista, mas assumidamente com ligações ao Governo. Mesmo este não reconhece qualquer irregularidade no "referendo", mas deixa no ar uma declaração que pode ser considerada controversa: invocar a Constituição da China é elevar a questão para um outro patamar que vai gerar “grande debate”. Eu diria mais, é chamar a polícia de choque para resolver uma discussão entre vizinhas onde uma deixou cair lixívia para vestido vermelho da outra na hora de pendurar a roupa. A Constituição da R.P. China, pelo menos que eu saiba e sem aprofundar a questão não vigora em Macau, e de acordo com o artº 31º da mesma: "O Estado pode criar regiões administrativas especiais sempre que necessário. Os regimes a instituir nas regiões administrativas especiais deverão ser definidos por lei a decretar pelo Congresso Nacional Popular à luz das condições específicas existentes". As tais "condições específicas existentes" estiveram na génese da própria Lei Básica, no âmbito do "elevado grau de autonomia" garantido pelo Governo Central - e na Constituição da R.P. China também não se encontra uma única vez a palavra "referendo".

O que Gabriel Tong poderia ter sugerido em vez da possibilidade de um "debate alargado" sobre o tema à luz da Constituição chinesa era um debate sobre a própria possibilidade da revisão do método de eleição do Chefe do Executivo. Reparem: possibilidade, não imperatividade ou inevitabilidade. Uma troca de ideias ou a discussão pública de uma possibilidade, ainda para mais prevista na própria Lei Básica, não é meio caminho andado para a sua imposição. Reparem como a produção legislativa do proposto no artº 23 foi uma espécie de desígnio, mas ninguém parece com muita vontade de criar legislação que regule o direito às associações sindicais e à greve, previstos no artº 27. Ainda hoje um colega meu abordou-me sobre o meu artigo de ontem do jornal Hoje Macau, onde não excluo de todo, antes pelo contrário, participar no tal "referendo" e votar no "Não" à pergunta sobre o sufrágio universal. Então porque é que o Governo não encara a possibilidade do feitiço se virar contra o feiticeiro? Que indicações têm de que a população votaria em massa no "Sim", e de que isso seria "crítico"? Medo do quê, afinal?

Ao criar um falso "tabú" em redor deste "referendo" é como estar a esconder um rebuçado de uma criança gulosa, mesmo que esta desconheça se é doce ou amargo. É natural que a curiosidade vá sendo cada vez maior, e que um maior número de residentes procure saber qual a razão deste alarido, e porque tem o Governo tanto receio de esconder algo que afinal não é ilegal - pelo menos até os tribunais se pronunciarem, o próximo capítulo desta saga. Um pai que evita falar com os filhos quando estes têm uma dúvida ou são acometidos de curiosidade arrisca-se a que sejam estranhos a fazê-lo, substituíndo-os no seu papel de pais. Ao assumir a confrontação, tudo indica que mais por teimosia do que por outra coisa, a derrota arrisca-se a ser maior do que simplesmente promover o debate, ou agora que já é tarde, autorizar o "referendo" - e se possível aproveitar o seu resultado para emendar a mão e fazer o que não fez antes. Agora com esta atitude de "fé e força", os dados estão lançados; faites vos jeux, que é como quem diz, façam as vossas apostas.

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