sábado, 22 de fevereiro de 2014

O fungágá da bicharada


Tem sido uma semana complicada em termos de actualização, por motivos de saúde do autor, que tem andado com os sonos trocados. Não estou a pedir que tenham pena de mim, e até acho que apesar de meio condicionado, consegui mais ou menos "cumprir as cotas" de posts habitual numa semana normal. E agora a cereja no topo do bolo, o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Aproveitem bem o resto do fim-de-semana, e fiquem com os anjinhos.

O diploma do projecto de lei para a protecção dos animais foi apresentado pela segunda vez na passada segunda-feira na Assembleia Legislativa pelo deputado José Pereira Coutinho, e pela segunda vez foi chumbado, apesar de desta vez ter recebido sete votos favoráveis, contra os quatro da primeira apreciação – perdido por um, perdido por cem, assaz dizer. Não se esperava outra coisa, uma vez que dificilmente um deputado assumidamente desalinhado com o Executivo – pelo menos em teoria – viria um diploma tão fracturante e até algo sensível ser aprovado por uma câmara maioritariamente pró-sistema. O que se lamenta é o debate em torno do diploma, onde mais uma vez ficou provada a fraca qualidade material e humana do nosso hemiciclo. Se era para votar contra, votavam e acabou, nem precisavam de explicar porquê. A gente já percebeu, pronto, não vale a pena tapar o sol com uma peneira. Ao optarem por justificar o “não” à proposta apresentada pelo deputado da Nova Esperança, foi pior a emenda que o soneto.
Como Leocardo que sou, este é um assunto que naturalmente me preocupa: os direitos dos animais. Pena que os irracionais não tenham o engenho para entender o que estavam ali os (alegadamente) racionais a dizer deles e dos seus putativos direitos, senão iam fazer companhia à hiena num coro de risota. O diploma de Pereira Coutinho tem lacunas, é certo, não é perfeito, nada o é, mas era escusado recorrer a um tipo de argumentação que demonstra um grave desfasamento da realidade em que estamos inseridos. Mas que insistência é esta nos “animais selvagens”? Mas que animais selvagens – e falo no sentido restrito do termo – temos nós aqui que justifique entrar na discussão de uma lei que, e não sei se já conseguiram entender isto, visa apenas proteger os animais indefeso da brutalidade dos homens. Andar ali a falar de cobras, crocodilos, feras devoradoras de homens e outras inanidades até dar a entender que estamos ali na presença de crianças do ensino pré-primário. Mas afinal estamos em Macau, ou estamos no Sabá, em Bengala, ou quê?
Não sei se é só para embirrar, mas desconfio que sim, senão caso contrário há por ali muito boa gente a precisar de um dicionário. Conceitos como “doméstico”, “selvagem”, “desnecessária” ou “sensibilidade” parecem ser estranhos a alguns dos deputados, que em muitos casos têm uma curiosa atracção pelo abismo do ridículo. Zheng Anting, por exemplo, acha que a lei protege pouco os donos dos animais, nomeadamente nas situações em que são atacados pelo próprio animal (?), e lembrou que “os cães não sabem conversar, e às vezes têm que ser fechados”. Ora, o sr. deputado Zheng é muito novo, muito verdinho, e por isso não se recorda do tempo em que os animais falavam. Foi antes da internet e dos telemóveis, antes dele nascer, quando ainda não passava de um reles “micróbio”.
E por falar em micróbios, essa é a preocupação do seu colega de bancada Mak Soi Kun, que sendo o cabecilha da parelha, está preocupado que os micróbios sejam contemplados na lei, temendo que ao tomar um anti-viral esteja a cometer “violência desnecessária contra animais dotados de sensibilidade”. Sim, eu também gostava de saber se o meu bacilo de Koch de estimação está protegido da brutalidade dos homens quando vai para o telhado uivar à Lua. Sábio e disciplinador, desafiou Pereira Coutinho a apresentar antes “diplomas que protejam os direitos dos deficientes e dos idosos” – que como se sabe, não existem, e os “deficientes e idosos” são para o sr. Mak Soi Kun a mesma coisa que os cães e gatos. Para o sr. deputado, o ideal era que um jovem fosse visitar o avô ao Domingo, de preferência sob a supervisão de um assistente social e debaixo de escolta policial, e que pelo caminho pisasse num gato, desse um pontapé num cão e dizimasse milhões de “micróbios”. Para acabar em beleza, reitera que o diploma pode “criminalizar práticas comuns”, citando como exemplo “os animais fazerem amor na rua”. Sem comentários, mas já agora alguém sabe o que andam a fumar lá em Jiangmen?
Outra figura triste foi a da deputada Song Pek Kei, a “tal” nº 3 dos Cidadãos Unidos, que do cardápio da palermice não gosta tanto do ridículo, e por isso manda antes a vir a ignorância pura e simples. Como quem acabou de descobrir a pólvora, identifica o grande rombo na proposta de Pereira Coutinho: “E se eu matar um frango para comer? E a desratização?”. Eu não sei se comer um frango é considerado “violência desnecessária contra animais”, e se é, ainda bem que a legislação não passou, pois comi um frango assado com piripiri ontem ao almoço, mas tenho a certeza que se a sra. deputada estiver no meio da rua a degolar um frango, é pelo menos multada, pois os locais designados para o efeito estão já regulamentados por lei. Sabia, menina? Quanto à desratização, uma questão de saúde pública e por isso também suportada por lei vigente, duvido que um rato se possa considerar “animal de estimação”. É possível que seja para ela, pois mesmo que não tenha ratos, tem pelo menos…bem, esqueçam.
O que me deixa um tanto ou quanto agitado é a visão que a deputada Song Pek Kei tem do mundo que a rodeia. O diploma prevê a elevação do estatuto dos animais de “coisas” para “animais”, o que é legítimo, e só se estranha que já não tenha sido feito antes. Mas a sra. deputada insiste que “É normal uma criança perguntar aos pais: se um animal não é uma coisa, o que é?”. Mal estará o mundo quando as crianças não souberem distinguir uma “coisa” de um “animal”. Se calhar Song Pek Kei faltou à aula da primeira classe onde ensinaram a diferença (deve ter perdido o autocarro, que estava cheio de trabalhadores não-residentes), mas eu explico de uma maneira tão simples que até a menina entende: coisa – mesa, carro, bacia; animal – cão, elefante, javali, sua anta.
Dos poucos que ainda disseram qualquer coisa que se aproveitasse esteve em destaque Chan Chak Mo, que falou da situação dos galgos do Canídromo e dos cavalos das corridas de trote. Isto nem revela uma esperteza por aí além, pois são situações já conhecidas que de facto tornam complicado produzir esta tão necessária legislação. Resta então esperar pelo Governo, que terá certamente este autêntico Fungágá da Bicharada de pé nas duas patinhas e com a língua de fora, a dizer que “sim senhor, os micróbios são animais, e não coisas, olha que disparate…”.

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