Enquanto curtia a virose esta manhã, estava a passar o programa "Portugal no Coração", apresentado por José Carlos Malato e Diamantina Rodrigues. Entre os convidados estavam alguns nomes do fado, entre eles o cantor Rodrigo, a quem fiz referência aqui no outro dia na rubrica "Os sons dos 80", mas o principal era José Carlos Rodrigues, que foi guitarrista de Amália Rodrigues durante quase 30 anos. O senhor, actualmente com 94 anos, está até bastante preservado (não lhe dava mais de 75), e com uma vivacidade e discernimento invejáveis. Falou dos tempos do início de carreira, e de como começou tarde, apenas aos 29 anos, e aí Malato pergunta: "Nesse tempo o meio artístico era ainda um pouco mal visto, tinha má fama, não é verdade". O senhor respondeu que sim, e que os amigos lhe diziam "então agora estás metido no fado", e que "as fadistas eram normalmente prostitutas", e que fado era basicamente sinónimo de "triste destino". Só que no momento em que José Carlos Gonçalves diz a palavra "prostitutas", a apresentadora Diamantina Ferreira exclama alto e bom som "ai que horror!", com os olhos muito abertos, como se o senhor tivesse acabado de dizer um palavrão bem grande.
Isto é o que se pode chamar de "falta de coração", e logo para um programa chamado "Portugal no Coração". Sim, sabemos que em tempos remotos o fado estava ligada à vida nocturna e boémia, que as casas de fado eram locais mal frequentados e os músicos eram marginais da sociedade, ou pelo menos tidos como tal. A própria Severa, a nossa primeira diva do fado, era prostituta, e das muitas que então exerciam o seu ofício, a tal "mais velha profissão do mundo", as que sabiam cantar animavam esses "antros" onde se ouvia a canção nacional. Não seriam certamente mães de família ou lavadeiras que lá iam cantar, com toda a certeza. Isto foi antes da comercialização do fado, é claro, e a geração que se seguiu, onde pontificavam nomes como Hermínia Silva, Argentina Santos, Fernanda Baptista ou a própria Amália, não era uma geração de prostitutas com queda para o canto. Pelo menos não necessariamente, mas sabemos como até bem perto do final do século passado existia em Portugal um grande preconceito com as mulheres no mundo do espectáculo.
A reacção de Diamantina Rodrigues ofende as prostitutas, e deixa indignado alguém com o mínimo de bom senso e sentido humanista. É que uma "prostituta", minha cara Diamantina, é um ser humano. Não é um carrapato ou um bocado de merda de cão que passamos ao lado para não pisar. As prostitutas no são criminosas, e mesmo nas legislações onde são consideradas como tal, são os homens que as procuram; elas podem aliciar ou não, mas não obrigam ninguém a nada. Ainda compreendia se o convidado tivesse contado que certo fadista ou outro artista era pederasta, violador e canibal, mas...uma prostituta? E cuidado com a definição de "prostituição" no sentido mais lato. Pode-se considerar "prostituição" fazer algo de que não se gosta a troco de dinheiro, ou ser coagido à prática de um acto, mesmo que involutariamete, e não é preciso necessariamente "abrir as pernas". Quem sabe se as prostitutas não consideram alguns profissionais de televisão também eles "prostitutos"? E atenção e a esses impulsos, não vá alguém dizer que fulano é "gay", e lá solta a Diamantina um dos seus "ai que horrores!". Olhe que o Malato no vai gostar.
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