segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Macau 1994 - Cenas de um casamento


Sei que já vem um pouco fora de estação, mas por motivos de programação, só agora foi possível publicar o artigo de quinta-feira do Hoje Macau, que é (mais ou menos) inspirado no Dia de S. Valentim. Tenham uma boa semana!

Queria partilhar com o estimado leitor uma efeméride: passam por esta altura, mais coisa menos coisa, 20 anos desde que Macau e eu nos apaixonámos, e como fazem muitas pessoas nesse estado de embriaguez consciente a roçar o estupor, casámos. Sim, sim, já lá vão 20 anos, quem diria, até parece que foi ontem. O quê? Parabéns? Ahh…obrigado, muito obrigado. E digo isto com a maior das sinceridades, ao contrário daqueles casais que comemoram as bodas de um metal precioso qualquer e quando lhes dão os parabéns murmuram “obrigado” entre dentes, como quem quer dizer “e se fosses antes gozar com a tua tia?”. Eu e Macau temos uma relação fantástica. Não brigamos, nunca nos passou pela cabeça separarmo-nos, ou sequer “dar um tempo”, quanto mais o divórcio. Temos os nossos problemas, é certo, como todos os casais, mas a culpa é sempre dos outros. Sim, as nossas desavenças matrimoniais devem-se sobretudo a factores externos. É algo que não podemos evitar, e por isso temos enfrentado juntos as tormentas, e juntos temos usufruído dos momentos felizes. E quanto ao sexo? Se quiserem mesmo saber, continua óptimo, exactamente como nos primeiros tempos, e quando falta a imaginação não há nada que um pouco de pornografia “online” não resolva.
Há quem diga que os casais “normais”, ou seja, os que consistem de dois seres humanos e não um homem e uma cidade, como no nosso caso (reparem como sou um gajo mesmo “prá-frentex” quando digo “dois seres humanos” e não “um homem e uma mulher”, tornando a minha retórica aprazível aos paladinos dos direitos LGBT), enfrentam “crises” sazonais. Há a “crise” dos sete anos, ou dos nove, não sei bem, e depois a dos doze, acho, quer dizer, não sei ao certo – nunca estive casado tanto tempo para tirar o curso completo. Para mim o próprio conceito de casamento é sinónimo de crise. Reparem na situação da península coreana, que dura há mais de 60 anos. Um caso típico de casamento; se realmente se detestassem, já tinham decidido limpar o sebo um ao outro. A China e Taiwan, um exemplo ainda melhor. Aquilo é um casamento temperado com doses generosas de BDSM. A China diz “ai és tão rebelde…estás a pedir umas palmadas nesse rabiosque”, e Taiwan retalia “sua comuna malvada…atira-me esse míssil, que me deixas a estalar de desejo”. Não há casamento sem crise, pois só assim se explica que as pessoas se “aturem” tantos anos. O casamento é a arte de bem aturar o outro.
Entre mim e Macau existe uma cumplicidade que torna impossível que terminemos a relação. Se um dia nos separarmos, vai ser um tal lavar de roupa suja que se fossem fazer um mini-série para televisão teria que passar depois das duas da manhã, e com uma bolinha no canto do ecrã. Temos coisas terríveis para contar um do outro. Cheguei em Agosto de 1993, e recordo-me bem da primeira vez que olhei da janela do quarto da primeira casa onde fui morar, ali para as bandas do Mercado Vermelho. Tinha passado um tufão por Macau poucos dias antes, o dia estava chuvoso e cinzento, e às três da tarde de um dia de Agosto sentia-me como nas primeiras horas da manhã do dia mais frio de Janeiro. Ainda por cima os funcionários da empresa responsável pela recolha de lixo estavam em greve, o que deixavam as ruas com a aparência de um cenário pós-apocalíptico. Andei durante semanas a contar as horas para chegar a Macau, mas nesse momento, e pela primeira vez, senti um aperto no peito, qual reflexo involuntário, como que num espasmo, quase me fazia chegar as lágrimas aos olhos. Mas tenho uma desculpa: tinha 18 anos. Era mesmo parvinho. Quando se sentirem como eu me senti naquele dia, pensem antes na idade que têm, pois nem tudo é permitido a todos.
Depois dos seis meses de adaptação da ordem, pimba! apaixonei-me. Não fui apanhado de surpresa, pois já antes disso tinha a ligeira sensação de que ia ficar por aqui mesmo, até depois daquela data que os mais desinformados consideravam o limite, e que depois disso Macau se tornava proibitiva, uma última fronteira, e que era 1999. Depois do primeiro ou segundo mês percebi que não era nada daquilo que diziam. Nem os chineses andavam a amolar as facas ou a limpar os canos serrados da caçadeira à espera da transição, e já tinha ficado “agarrado” àquela doce letargia que implicava viver em Macau, onde era fácil chegar a toda à parte e estava tudo ao nosso alcance. Era como numa orgia romana onde bastava esticar o braço para pegar as uvas, e ainda tínhamos as vestais para nos dar festinhas – mesmo que estas fossem tudo menos virgens. Quem viveu em Macau durante este tempo e estivesse a pensar em ir embora, só podia ser certamente um louco. Ou um sádico.
Desculpem-me se estou a parecer petulante, ou a dar ares de saudosista pró-colonialista, mas quem estava cá há vinte anos ou até antes disso (e são ainda bastantes) sabe do que estou a falar. Aqui entre nós, era do caraças, não era? Aquele era o tempo antes de todas as dúvidas, todos os medos, todos os senãos, não-seis ou talvezes. Sim, andavam alguns a contas com a transição, “should I stay or should I go”, outros já faziam caixotes, os derrotistas, mas curiosamente depois disso ainda foram mais os que chegaram do que aqueles que se viam partir. Há ainda os que todos os anos diziam que “para o ano iam embora” e hoje ainda cá estão, e isto para não falar dos que partiram e depois voltaram, os tais “boomerangues”. Não se pense que não se trabalhava. Trabalhava-se pois, e era com gosto, tudo muito mais descontraído, melhor que o actual estado de coisas onde o que vale são as aparências.
Foi o tempo antes das crises asiáticas, da SARS, dos H7N9, dos pânicos por tudo e por nada. Andava-se na rua à vontade, e quanto aos táxis? Bastava levantar o braço para ver as horas e paravam dois à nossa frente. Mas não haviam turistas? Nem casinos? Claro que tínhamos turistas, mas quase nem dávamos por eles. E os casinos estavam sempre cheios, e ninguém se queixava. Não eram preciso virem uns gajos lá de Las Vegas ensinarem o sermão ao padre. “Ah pois, mas o salário médio da maioria da população era cinco mil patacas, especialmente a chinesa, e o Governo no distribuía cheques”. E depois? Por incrível que pareça, vivia-se decentemente com cinco mil patacas, e os preços dos bens de consumo não disparavam cada vez que o Governo anunciava um subsídio. Podia-se alugar uma casa com três quartos por 3000 patacas, dividia-se com um amigo e se fossem funcionários acabava por ficar em 500 patacas para cada um. E sabem o que pensam os chineses? Se a minha vida dependesse disso, arranjava um grupo numeroso deles que vos diziam que eram bem mais felizes naquele tempo do que agora. Pelo menos ninguém dormia no chão ou era obrigado a ir morar para Zhuhai.
E depois passaram vinte anos, e é o que se vê. Aquela tipa boazona, roliça, de ancas firmes, olhos penetrantes, sorriso rasgado, com um centro suculento do encontro entre as culturas ocidental e oriental, já não é o que era. Está cada vez mais gorda, e nem por isso deixa de enfardar os bombons que comprou na tal “shoppes” a imitar Veneza. Tem a cara borrada dos cosméticos que comprou no centro, que lhe tapam as rugas mas fazem o rosto assemelhar-se às nádegas de um babuíno. Que desilusão. Que grande badalhoca. Mas olha, não te vou abandonar, nem fazer queixinhas à tua mãe, como sugeriu aquele rapaz do Novo Macau. Ainda tenho esperança que voltes à velha forma, ou fiques lá perto, pelo menos – ainda és nova, podes recuperar. Faz lá isso por mim, nem que seja pelos anos que passámos a aturar-nos um ao outro. E olha, já agora, feliz dia de S. Valentim. E não, não vamos jantar fora. Hoje ficamos em casa, e quem sabe se mais tarde vemos uns pornos. Alinhas?

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