quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

SOS liberdades


O presidente da Associação do Novo Macau (NMD), Jason Chao, apelou ontem às autoridades portuguesas que interfiram na situação da liberdade de expressão e de imprensa em Macau. Em causa está a decisão dos orgãos judiciais de não considerarem ilícita a detenção de Chao no ano passado, aquando da visita do ex-presidente do comité permanente da Assembleia Popular Nacional, Wu Bangguo. O presidente do NMD foi detido durante cinco horas sem acusação formada ou qualquer explicação, e foram-lhe apagadas imagens e outros ficheiros no telemóvel. Jason Chao fala ainda de pressões da parte do Governo central no sentido de influenciar os media em Macau, e que os jornalistas locais estão sujeitos a um ambiente condicionado, e com limites à sua liberdade de expressão. Acrescenta ainda que está a ponderar tomar mais acções, nomeadamente levar o caso a tribunal, e encontra-se a discutir o próximo passo com os seus advogados.

Em primeiro lugar, e vamos falar a sério, a atitude das autoridades naquele dia 21 de Fevereiro na Torre de Macau é passível de ser considerada pelo menos um caso de excesso de zelo - isto se não quisermos questionar a legalidade da detenção de Jason Chao. Tem-se diluído este problema em questões secundárias, como o facto do presidente do NMD não ser jornalista credenciado, e aparecer numa área reservada aos profissionais da comunicação social. Não sei se é mesmo assim, mas se bem me recordo o que Jason Chao tentou fazer foi simplesmente entregar uma petição a Wu Bangguo, e para tal não recorreu a nenhum expediente que possa ser considerado violento, não quebrou quaisquer barreiras físicas, nem apareceu de forma abrupta em frente ao dirigente chinês, que se mostrou até um pouco atrapalhado com o alarido que se seguiu. O que fez Jason Chao de ilegal fica por explicar. Não me parece sequer que tenha cometido alguma quebra de protocolo.

O apelo ao Governo português pode parecer descabido, uma piada até, mas se foi com Portugal que a República Popular da China negociou as condições que levariam à transferência da soberania de Macau, e que entre estas se encontravam direitos como a liberdade de imprensa, de expressão, de manifestação ou de associação, a quem mais devia ele recorrer? Agora se espera uma resposta ou uma reacção de Lisboa, isso é outra história. Podemos até apostar que o melhor é esperar sentado. Se actualmente podemos dizer que em Macau se goza de plena liberdade de expressão e de imprensa - apesar de alguns incidents pontuais que nunca ficaram completamente esclarecidos - até onde esta liberdade vai? Até onde se pode "esticar"? É um facto de Jason Chao e outros elementos do NMD são considerados problemáticos por natureza, mas e quando chegar a vez de um profissional da imprensa ver limitado o exercício da sua profissão, quer através de interferências directas, ou através de presses mais ou menos dissimuladas? E o que nos leva a crer que isto já não chegou a acontecer, e por mais que uma vez?

O tema esteve em debate no último programa "Contraponto", da TDM, onde além da questão da liberdade de imprensa se falou ainda da independência jornalística, da censura e da auto-censura. Um dos elementos do painel, o jornalista Paulo Rêgo (que além do moderador Gilberto Lopes era o único jornalista ali presente, e por isso falará com conhecimento de causa) chamou a atenção para o facto dos jornais em Macau serem propriedade dos próprios directores, e que em comparação a outras jurisdições, mesmo algumas consideradas livres e democráticas era uma vantagem. Deu-se o exemplo de Portugal, onde uns poucos grupos empresariais detêm a maioria do capital dos media mais importantes, ou da rede Globo, no Brasil, que açambarca uma boa parte dos orgãos de comunicação. É mesmo? O que podemos dizer da "independência" dos orgãos de imprensa em Macau?

No que diz respeito à imprensa em língua portuguesa, temos na actual RAEM quatro títulos na imprensa escrita diária, um canal de televisão e um canal de rádio. Sem incluir a diáspora, os residentes de Macau expatriados ou os ex-residentes, e mais alguns curiosos, diria que teremos um mercado de 4/5 mil consumidores destes produtos - e estaria a ser generoso se adiantasse um número maior. Isto em termos de opinião pública é uma ninharia. Convertendo isto a um número de eleitores recenseados, não chega nem para eleger um deputado para a AL. Os jornais mais lidos, que abrangem a esmagadora maioria da população, serão o Va Kio e o Ou Mun, especialmente este último. O Ou Mun é, como se sabe, o principal orgão de informação de Macau; do canal chinês de televisão da TDM não reza a história, pois é sabido que a preferência recai sobre os canais da vizinha RAEHK, nomeadamente a ATV e a TVB. Todos estamos a par do conluio que existe entre o Governo de Macau e o Ou Mun. Negar isto é a forma mais descarada de desonestidade intellectual que existe. As vantagens que o Ou Mun retira do Executivo são bem conhecidas, e agora a questão: é isto uma forma de pressão? Com toda a certeza que é. Quem disse que "pressão" precisa de ser necessariamene negativa? Quem vai morder a mão que lhe dá de comer?

Não se pode dizer que qualquer jornal seja completamente independente. Isso simplesmente não existe. Imaginemos que um empresário, filantropo, milionário excêntrico, um particular qualquer ou uma cooperativa de camponeses que financie a publicação de um jornal tenha como directiva que este seja "independente". Até onde pode ir esta "independência"? Caso o jornal tenha na sua posse informação que comprometa um dos seus financiadores, pode publicá-la? É-lhe permitida esta "independência"? Duvido e faço pouco. Deve o jornal publicar uma notícia a pedido do seu financiador ou financiadores, mesmo que esta vá contra a sua linha editorial ou as convicções dos profissionais que o fazem? Penso que será muito difícil dizer que "não". Independência não existe, nunca. O mais que poderá existir é alguma autonomia, com limites, claro.

Isto leva-me a falar da questão da auto-censura, mais um mito. O dr. Frederico Rato deu um exemplo curioso, de como um director não publicaria uma notícia dando conta que tem uma amante, ou que recebeu vantagens de x ou de y, questionando se isto seria ou não uma forma de auto-censura. Penso que a ideia era demonstrar de que este se trata de um conceito subjectivo. Não quero estar aqui a meter a foice em seara alheia, uma vez que não sou jornalista, mas sendo autor de um blogue aberto, e assinando semanalmente uma coluna de opinião num diário local, sinto-me pelo menos no direito de dar a minha opinião. Repito: sem qualquer tipo de presunção, nem querendo fazer da minha palavra um dogma irrefutável, esta é a minha opinião, apenas: não existe tal coisa como seja "auto-censura". Passo a explicar.

O que existe, por um lado, é censura. Do outro existem critérios. E que critérios são estes? Por um lado imaginemos que um jornalista desportivo ao serviço de um jornal dessa especialidade teve acesso a informação sensível sobre um escândalo que envolve um politico ou um empresário sem qualquer ligação ao mundo do desporto. O director do seu jornal pode impedi-lo de publicar essa informação no seu média, sem que nada impeça o professional de o fazer junto de uma publicação generalista, ou a título pessoal, num blogue ou nas redes sociais. Isto é um critério, e não qualquer tipo de censura. Outro jornalista que trabalhe num diário generalista, e cuja vizinha do andar de cima, de quem não gosta ou com quem se travou de razões que só aos dois dizem respeito, recebe cavalheiros a horas suspeitas, com a agravante destes serem possivelmente casados. Inibe-se de fazê-lo por achar que este tipo de informação não é do interesse do público, e não quer fazer do jornal um veículo para resolver as suas questões pessoais. Isto não é auto-censura; é o seu critério, que neste caso me parece revestido de validade.

O que é censura? Censura não acontece apenas quando o director se recusa a publicar uma notícia que considere prejudicial para os interesses do jornal, ou quando recebe instruções de terceiros que o faça, ou quando nos idos tempos do Estado Novo e da PIDE a imprensa, as artes e os espectáculos eram submetidos à aprovação prévia e ao lápis vermelho: pode ser qualquer forma de pressão exterior. Não é auto-censura quando um jornalista se inibe de divulgar factos a que teve acesso porque isto lhe poderá trazer prejuízo. Aqui trata-se de censura pura e dura. A censura não precisa de ser directa; quando um profissional sabe de antemão que não deve publicar uma notícia, é porque já lhe foi dado a entender que isso lhe vai sair caro. A censura não é necessariamente praticada de dedo apontado e com ar de mauzão. Pode ser feita com um sorriso, um abraço, "como vai a esposa e os meninos?", com uma prenda no natal e outra no aniversário - que atenciosos podem ser os nossos censores.

Nós na imprensa de Macau - e mais uma vez, falo apenas na qualidade de colaborador e não de jornalista - somos deixados a pastar em prado verde, pois estamos a cobro dos direitos que foram celebrados entre Lisboa e Pequim, mas mais do que isso, a nossa interferência não vai ter impacto na opinião pública local ou regional. Não quero com isto desvalorizar a nossa contribuição para uma imprensa livre e para o exercício da liberdade de expressão, mas é necessário olhar para a "bigger picture" - o que diriamos se um nosso concidadão fosse detido sem acusação formada por se expressar de forma pacífica, mesmo que em rigor não tivesse a acreditação necessária? Com que imagem ficava a "liberdade de expressão". Penso que não é preciso reafirmar o que já todos estamos cansados de saber: a liberdade de expressão é um alicerce sem o qual seria impossível existir o "edifício" que é a liberdade de imprensa.

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