sábado, 8 de fevereiro de 2014

Cavalos de corrida


Mais uma semana que finda, mais outra que começa, e assim vamos a passo lento a caminho da sepultura...ou do forno crematório...ou da vala comum...ou do estômago de um animal feroz...ou do fundo do mar. Bem, perdoem-me o estado de espírito um tanto ou quanto funesto, mas tenho andado com os sonos trocados. Fiquem antes com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau, e disfrutem do que resta do fim-de-semana!

Nota prévia: quero advertir o leitor que este texto contém inúmeras referências a material de outros autores, nomeadamente do cancioneiro português contemporâneo, e que serão devidamente assinaladas, de modo a evitar acusações de plágio.


Gostava em primeiro lugar de saudar os leitores do Hoje Macau e do Bairro do Oriente, e desejar-lhes um feliz Ano Lunar do Cavalo. E é só. Gostaria de colocar um pouco mais de entusiasmo nesta introdução, mas como não acredito que o facto de este ano ser o do Cavalo, do Dragão, do Cágado ou de outro bicharoco qualquer vá fazer alguma diferença ou interferir com o que vamos encontrar pela frente nos próximos doze meses, mais coisa, menos coisa. Tudo o que se diz em matéria de previsões para o Ano Novo que agora chega é como uma chiclete, que se prova, mastiga e deita fora, se demora (1). O período de validade daqueles almanaques que tornaram milionários os tipos que os escreveram é ainda mais curto que o da TV Guia. Alguém que daqui a seis meses sofra um acidente, caia das escadas ou seja atingido por um motociclo e parta uma perna, não vai consultar o almanaque para saber se o “seu” mestre de “feng-shui” tinha previsto este evento. Mesmo não acreditando em bruxas, fico aborrecido quando oiço naquelas previsões que este ano vai ser mau para o meu signo, neste ou naquele aspecto, por este ou por aquele motivo. Fico ofendido, sei lá, sinto que se trata de um ataque pessoal, estarem assim a desejar-me mal sem que eu nunca lhes tenha feito nada. Olha, sabem o que vos digo? Vão vocês!
Se tivesse que escolher um signo para mim, seria Céptico, com ascendente de Cínico, e ao fazer o meu mapa astral para este ano ia descobrir que o meu ia estar na casa de Não-me-lixem, e com uma forte influência de Vão-dar-banho-ao-cão. Se isto é bom ou mau, não sei, e acho que ninguém sabe ao certo cada vez que paga a um desses astrólogos e adivinhos da treta para lhe antecipar o dia de amanhã – como se eles fizessem alguma ideia. E depois que piada é que tem, prever o futuro? Eu até podia desvendar os segredos mais secretos, como o som, a cor, o olhar ou o número fatal, olhar nos olhos de Deus e esperar o final, enfim, viver como por magia a vida num só dia (2), mas seria a mesma coisa que comprar um livro e começar por ler primeiro o fim. O que nos dizem é um amontoado de balelas sem sentido que aprenderam na Universidade dos Artolas, e como não entendemos peva, ficamos convencidos que esta criatura mística sabe do que fala, e se não a entendemos é porque não temos o seu dom, os seus poderes mágicos.
Ignorem as generosas doses de caldo de sarcasmo que estou a juntar a este guisado, mas deve ser do cansaço. Sim, estou cansado de estar em casa sentado em frente ao computador, onde passei praticamente todo o tempo acordado durante estes cinco ou seis dias que duraram as mini-férias do Ano Novo. Pensei que a clausura ia fazer-me bem, pois às vezes é no meio do silêncio, que descubro as palavras por dizer (3). Não preciso de estar aqui a lamentar-me pela enésima vez da confusão que tem sido Macau nestes dias, onde é impossível circular a pé na rua. Para quem, como eu, não estiver interessado em andar por aí a praticar “full-contact” urbano, o melhor mesmo é ficar em casa. O mais importante é não nos deixarmos cair em tentações melancólicas, porque rebolar no lodo só serve para nos sujarmos (4).
É de facto enfadonho estarmos presos na nossa própria casa, nesta cidade, que quer eu queira quer não queira há-de ser uma fronteira, e a verdade cada vez menos verdadeira (5). Por outro lado dizem que isto é bestial para Macau, uma maravilha para a economia, quando entram velhas e turistas, entram excursões, entram benefícios e cronistas, entram aldrabões, e entra muito dólar muita gente, que dá lucro aos milhões (6). Mas o que adianta, se todos eles ficam nos hotéis, jogam nos casinos, andam nos autocarros, almoçam e jantam nos restaurantes e fazem compras nas lojas que pertencem à mesma meia dúzia de empresários, aos “suspeitos do costume”? O que ganhamos em ficar sitiados, se no fim é apenas uma pequena elite que vem em bandos com pés de veludo chupar o sangue fresco da manada? Eles que comem tudo e não deixam nada (7). Falo por mim quando digo que quero o meu dinheiro de volta, que há tanta gente a dar-me a volta, e não foi para isto que eu vim cá.(8)
Talvez o melhor mesmo é juntar-me à mole que encara isto do Ano Novo com optimismo, como um novo começo, e quem sabe se este Cavalo que agora chega é a denuncia do que pensa e o que sente a gente certa, um corcel à desfilada no meu peito(9)? E já agora, antes de me despedir, vou fazer uma previsão que com toda a certeza não vai falhar. Este é o Ano do Cavalo do elemento “madeira”. Se você é também do signo Cavalo do elemento “madeira”, prevejo que este ano vai completar as 60 primaveras, uma linda idade (isto é, se lá chegar, e eu acredito que vai…). Peço desculpa se é este o seu caso, e não queria ser recordado desse facto, e já agora desejo-lhe muita saudinha. Só que ao contrário das outras, esta é uma previsão que é tiro e queda, porque agora que a corrida estoirou, e os animais se lançam no esforço, agora que a vida passa num “flash” e o paraíso é além, não passamos senão de meros cavalos de corrida. (10)

1- Táxi – “Chiclete”
2- Rádio Macau – “A vida num só dia”
3- Maria Guinot – “Silêncio e tanta gente”
4- Xutos & Pontapés – “Falhas”
5- Xutos & Pontapés – “Esta cidade”
6- Fernando Tordo – “Tourada”
7- José Afonso – “Os vampiros”
8- Jorge Palma – “Quero o meu dinheiro de volta”
9- Fernando Tordo – “Cavalo à solta”
10- UHF – “Cavalos de corrida”

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