quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Lições de cantonense, parte IV: fazendo caretas


Sendo o cantonense um idioma composto por monossilábos, há sons que os chineses não conseguem pronunciar, porque não existem. Já lá vamos. Mas assim como há sons que não existem no cantonense falado, outros há que são exclusivos desse idioma, e para um estrangeiro pronunciá-los correctamente, é necessário alguma ginástica. O número cinco, por exemplo, lê-se “hmm”, e diz-se sem abrir a boca (curioso isto). É como se alguém que está a falar pelos cotovelos e a conversa não nos interessa, e vamos fazendo “hmm” a cada cinco segundos, fingindo interesse.

Outro som estranho é o de “heung”, que significa “perfumado” ou “fragrante”. Aqui é necessário fazer uma ponte entre o “e” e o “u”, encolhendo o lábio inferior e colocando a língua entre este e os dentes molares inferiores. Parece complicado, mas com prática chega-se lá. Este “heung” é a forma correcta de pronunciar o “Hong” de Hong Kong, que significa “Porto fragrante”. Recomenda-se praticar até à perfeição; quando estiver sozinho em casa declame este “heung” centenas de vezes, alto e bom som, até acertar com a pronúncia correcta, e para garantir que o entendem, acrescente o som “uh” no fim da palavra. Não economize na ênfase da sílaba tónica, e diga “heuuung-uh”….”heuuuuuunguh”, “heuuuuuuuung-uh” até acertar. Não recomendo que o faça na presença de outra pessoa, ou pode dar a entender que está a ter um AVC, e passados alguns minutos chega uma ambulância, e antes que se consiga explicar está a levar com a descarga eléctrica de um desfribilador.

Um dos que me diverte imenso pronunciar, pois permite expôr o ridículo de alguns destes preciosismos, é “pata”, o pé dos animais. Assim “pata de galinha”, por exemplo, diz-se “kai keoc”. Este “keok” requer uma acentuação no “o” e um “k” final muito breve, mas decidido. Ajuda se atirar-mos a cabeça para a frente, como quem se engasgou com uma azeitona e está a tentar cuspi-la. Falando em “pata”, o “pato”, a ave, diz-se “ngap”. Isto não se lê “nap” nem “gap”, mas é qualquer coisa intermédia. É preciso encontrar o tom certo, como quem afina um violão. Outro som que nos obriga a fazer caretas é o “yuet”, que significa “sangue”. O “t” no fim pronuncia-se normalmente, mas o “yu” diz-se como que a assobiar, e sem nos apercebermos fazemos um biquinho com os lábios, cuidando que nos fazemos entender. Dois destes exemplos aplicam-se a quem quiser fazer uma cabidela de pato: vai-se ao mercado e pede-se “ngap yuet”, e aproveita-se para pôr em dia a ginástica facial.

Outras expressões que requerem algum trato vocal especial são “kep” (agrafar), que exige um “k” forte, um “e” rápido e um “p” breve, quase mudo; “mit” (abrir, desembrulhar), que se diz com um subida de tom no “i”, e um “t” seco mas curto; e um dos mais complicados, o “seung”. Este é um dos sons mais difíceis de romanizar. “Seung” lê-se assim, com um “u” mais prolongado, e significa “subir” (descer diz-se “ló”), enquanto outro tom que lhe dá um significado diferente pronuncia-se “sêõng”, com o “o” mais prolongado possível, e quer dizer “em frente”, ou “avante”. Uma vez fui a um supermercado Park n’ Shop nas Portas do Cerco, e no momento do pagamento a empregada da caixa juntou às minhas compras uma garrafa de detergente. Julgando tratar-se de algum engano, disse-lhe que não tinha comprador aquilo, ao que ela me respondeu: “song!”, que significa “oferta”, mas dito é como “sooong-ah”, como quem insiste em dar uma prenda, ou em alternativa um enxerto de porrada.

Muitos sons do cantonense são ditos como que a cantar, e de facto alguns professores usam a escala musical das sete notas como exemplo. Quem não nasceu cá ou apenas teve o primeiro contacto com o idioma local na idade adulta, deve aprender através do contacto, escutar muito, ousar dizer disparates, não ter medo de errar e praticar, praticar, praticar. Quem aguentar as gargalhadas iniciais é compensado no fim, quando a prática começar a produzir resultados. Depois é só tratar por tu estes preciosismos desta complicada língua.

2 comentários:

Anónimo disse...

Só uma pergunta:
O Cantonês não é uma língua/dialecto/whatever falado esmagadoramente por chineses? Quer o Leocardo referir-se ao chineses não falantes de Cantonês? Relembro que se fala Cantonês (ainda que em bolsas dispersas) nas províncias de Guangdong, Guangxi e Hainan.

Leocardo disse...

Bem, como expliquei no início da rubrica, é sobre as minhas experiências e o meu contacto com o dialecto. Penso que outros estrangeiros encontram os mesmos obstáculos linguísticos e têm experiências semelhantes.

Cumprimentos