terça-feira, 8 de outubro de 2013

Lições de cantonense, parte II: o que estás praí a cantar?


Como já vimos, o cantonense tem sete tons, e dependendo da escala com que se pronuncia uma palavra, esta traduz-ser em sete significados diferentes. O meu vocabulário limitado não me permite dar muitos exemplos, e estou a escrever este texto “sem rede”, sem o auxílio de um dicionário. Contudo assim de repente lembro-me do caso de “tong”, com uma ligeira acentuação tónica no “o”. Dependendo do tom que se dá a essa vogal, “tong” pode querer dizer “dor”, “frio” ou “açúcar”. Nunca consegui atinar com qual é qual, mas esta é uma situação que se resolve com um pouco de mímica. Se estiverem zero graus na rua, e eu exclamar “hou tong!” (tanto frio), ninguém vai pensar que me estou a queixar de dores, ou a falar de açúcar. O contexto dá uma ajuda.

Para quem tem o vocabulário suficiente para compôr uma frase, mas tem dificuldade em pronunciar algumas palavras, basta juntar as restantes e tentar não as entoar tão mal que se tornem imperceptíveis. Pode-se dizer: “ngo sik hím to ko lei sik mai”, um dos meus provérbios chineses preferidos, que se traduz literalmente para “como mais sal do que tu comes arroz”, o equivalente ao nosso “o que tu sabes já há muito eu esqueci”, uma forma de ilustrar a nossa maior experiência ou conhecimento sobre um assunto. Mal pronunciadas individualmente, as palavras podem ser mal entendidas, mas todas juntas o nosso interlocutor fica com a ideia; é uma conjugação que não se aplica a outros significados. No entanto cuidado para não dizer “hín” em vez de “hím”, senão fica “eu fumo mais do que tu comes arroz”.

Algumas frases, especialmente as mais curtas, adquirem significados completamente diferentes conforme a pronúncia, se bem que em muitos casos a alternativa ao que queremos dizer não faz muito sentido. Há situações em que a nossa vontade de nos fazermos entender depende da exigência do interlocutor; em algumas situações damos o melhor para comunicar com um falante do cantonense, mas este não nos entende ou não quer entender, e outros em que falamos merda e mesmo assim o nosso esforço é apreciado, e ainda nos elogiam. Por exemplo, “kau tim” pode querer dizer “já está”, ou “está pronto”, como pode significar “nove horas”, dependendo do tom. A palavra “kau”, como já vimos, pode-se traduzir pelo número nove, e noutro tom pode significar “chega”. Se pedimos a alguém que nos encha um copo, dizemos “kau” quando queremos dizer que já chega, que pode parar.

Nos casos em que a conjugação faz muito mais sentido que a alternativa, um bom exemplo é “lok yu”, expressão habitualmente utilizada quando chove. Dizer “lok yu” quando é óbvio que está a chover é normalmente entendido como tal. Chove a potes, e podemos verificar esse facto pela janela, e se dizemos “uah…lok yu”, ou “tai lok yu” (chove muito), respondem-nos “aya”, ou “sim”. Mal pronunciado, “lok yu” pode querer dizer “peixe verde”; “lok” é verde”, e “yu” é peixe. É preciso muito má vontade para entedender “peixe verde” em vez de “chuva” quando é notório que está a chover lá fora. Outra confusão frequente é a pronúncia de “chu”, que pode ser entendido por “porco”, ou por “pérola“. Tinha um amigo macaense que me dizia que quando era mais novo e o seu cantonense era ainda deficiente, julgava que a cidade vizinha de Macau, Zhuhai” (em cantonense “chu-hoi”) significava “mar dos porcos”, quando na realidade é “mar das pérolas”.

E por falar em porcos e em mares, a semana passada, mais precisamente na quinta-feira, tivemos no programa da RTPi Portugal no Coração a participação via skype da nossa Xana Du, administradora do grupo do Facebook “Ponto de Encontro da Malta Lusófonona”, e responsável pela rádio 37, também naquela rede social. Ao vivo de Macau, Xana falou através de José Carlos Malato e Marta Leite Castro para todo o mundo, e a certa altura o apresentador perguntou-lhe como se diz “bifana” em cantonense. Xana não percebeu a intenção brejeira de Malato, mas lá acabou por dizer que o nome que se dá a uma costeleta de porco frita dentro de um papo-seco se designa por “chu pa bao”. Portanto, “chu” é porco, “pa” é costela, o que faz de “chu pa” costeleta de porco, e “bao” é pão. Malato, homossexual militante, acha adorável que este tipo de sanduíche soe a “chupa o pau”, uma das actividades predilectas do apresentador alentejano. De facto é difícil não fazer esta associação após a primeira impressão, mas o som de “chu pa bao” é em tudo diferente de “chupa o pau”. Explicar esta “piada” aos chineses causa-lhes estranheza. Onde é que um sanduíche popular nesta região tem paralelo com o sexo oral?

Um dos obstáculos que encontramos frequentemente quando tentamos comunicar em cantonense e assim tentar uma aproximação aos locais é a quantidade de chico-espertos que nos apontam os defeitos na pronúncia. Alguns destes puristas da treta acham que devíamos falar a língua, uma vez que estamos cá e isso facilitaria a nossa adaptação, mas não ajudam nada. Em alguns casos chego a dizer-lhes uma frase, que depois não percebem ou fazem-se de duros de ouvido, e depois peço a algum falante fluente da língua para repetir EXACTAMENTE A MESMA COISA e aí eles já entendem: "ah...era isso que querias dizer, seu 'kwai-lou' palerma". Para estes existe um rol de frases que podemos utilizar para os mandar a certo sítio, e esse vai ser o tema de amanhã. Vou avisando desde já que o teor desse artigo é interdito a menores de 18 anos. Aguardem!

Sem comentários: