O filme “About Schmidt”, de 2002, é um dos menos conhecidos do actor Jack Nicholson, mas que mesmo assim lhe valeu (mais) uma nomeação para o Oscar de melhor actor principal. O personagem da história, o tal Schmidt, aposenta-se após mais de 40 anos ao serviço da sua empresa, chegando ao fim da carreira num cargo executivo. Para o seu lugar vai alguém muito mais jovem, um “rapazolas” que durante a primeira visita de Schmidt à empresa depois da sua reforma faz-lhe ver que “está tudo bem”, e faz ver ao ansião que a sua presença “é dispensável”, mesmo que inconscientemente, e motivado apenas por boas intenções. Ele só queria que o idoso não se preocupasse e gozasse a reforma tranquilamente, mas Schmidt entendeu aquela atitude como uma manifestação de arrogância e desprezo.
De facto torna-se complicado sentirmo-nos inúteis, desnecessários, indesejáveis, ou sermos rapidamente esquecidos, mas é assim a vida. Realisticamente não há uma função, por muito exigente que ela seja, que não possa ser desempenhada por outra pessoa. Claro que existem excepções, nos casos em que o talento tem um papel preponderante, como acontece no desporto, na música ou nas artes, mas isto é uma gota de água no oceano. Assim como não podemos esperar que a nossa família e amigos chorem todos os dias quando morremos, é perfeitamente normal que os ex-colegas de profissão nos esqueçam mais cedo ou mais tarde. Normalmente é mais cedo do que tarde, por muito que nos custe.
Nos 20 anos que tenho prestado serviço à legião romana, perdão, à administração pública, assisti à saída de vários colegas, que ora cumprem 30 anos de serviço, ora atingem a idade limite de 65 anos. Há aqueles que tomam esta decisão por iniciativa própria, e têm planos para o futuro, uma vida além da repartição onde foram envelhecendo. Há outros que saem com um certo amargo de boca, como quem espera que depois de entregar o requerimento a pedir a aposentadoria, as chefias venham em prantos, lavadas em lágrimas, arrastando-se de joelhos a implorar que fiquem, porque fazem muita falta. Com os actuais quadros dirigentes que temos actualmente, o próprio Jesus Cristo era considerado dispensável na Direcção dos Serviços de Milagres. Repito, não há ninguém insubstituível, e mesmo alguém que seja bom trabalhador, dotado de conhecimentos técnicos, com boa capacidade de liderança e um motivador por excelência, leva com um frio “Ai sim? Então adeuzinho” se mete os papéis para a reforma. Basta preencher o lugar com outro mais ou menos com as mesmas capacidades, e com o tempo ele vai lá.
E há mesmo quem vá embora e nem olhe mais para trás, temendo transformar-se numa estátua de sal, como a mulher de Ló quando deixou Sodoma. Outros mais sentimantalistas regressam amiúde para visitar os colegas, crentes que estes morrem de saudades dele. Ás vezes a primeira visita realiza-se uma semana ou menos após a aposentação tomar efeito. Os mais calculistas aguardam um ou dois meses, ou um pouco mais, e aparecem de surpresa, aguardando que os ex-colegas larguem tudo o que estavam a fazer e o venham abraçar, lançar pétalas de rosa sobre ele, e abrir o champanhe. Dependendo do volume de serviço, arriscam-se a levar com um “Atão Zé, por aqui?”. Os que nunca nutriram por ele grande simpatia ainda sussurram entre eles: “O que é que este está aqui a fazer? Não se aposentou?” Mesmo os mais populares ou mais queridos, os que deixam realmente saudades pela forma cordial com que sempre pautaram a sua conduta com os colegas (muito raros), são bem recebidos durante a primeira visita, talvez a segunda, e depois deixam de ser novidade.
Quem trabalha há mais de dez anos na administração em Macau sabe do que falo. Por muito laborosos, solidários, companheiros, em suma, bons colegas que tentemos ser, há sempre um ou outro fdp que borra a pintura, e faz o que está ao seu alcance para nos fazer a vida negra. Há gente que leu algures em algum manual da treta sobre administração pública ou psicologia parva que a única forma de sobreviver numa empresa pública é espetando facas nas costas dos outros, antes que eles o façam primeiro. Mas e depois? Passam 30 anos, 32, 36, ou chega-se aos 65, e estamos vivos. Vamos à nossa vida e os gajos continuam ali a morder os calcanhares uns aos outros. E para a despedida? Um dedo do meio esticado e um sarcástico “adeus, divirtam-se!”.
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