segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Lições de cantonense, parte I: os tons e os números


O Mandarim, ou “Putonghua”, que significa literalmente “língua comum”, é o idioma oficial da R.P. China, falado pela maioria da população, ensinado nas escolas como língua materna e utilizado a nível oficial em todo o país. Um estrangeiro que queira vir viver e trabalhar na China tem a vida mais facilitada se aprender Mandarim, e o que não faltam são escolas e centros de línguas onde pode aprender esta nova linguagem dos negócios. No entanto, e apesar dos esforços do regime em unificar o país em termos linguísticos, os dialectos locais vão resistindo à invasão do Putonghua, e muitas destas minorias regionais recusam-se a abandonar a língua que passou dos seus avós para os seus pais, e dos seus pais para eles. Razões que se prendem com a tradição, com a cultura, ou simplesmente por desconfiar de quem lhe quer vir impôr algo que nunca pediram e a que não lhes apetece aderir.

Um dos dialectos mais falados é o cantonês, ou cantonense, originário da província de Cantão, no sul da China, e ali falado por milhões de pessoas. É ainda a língua mais falada em Macau e Hong Kong, onde adquire um estatuto semi-oficial, e por grande parte dos chineses ultramarinos, especialmente na Malásia, Vietname e Indonésia. É seguro dizer que para quem quer vir para Macau e Hong Kong, é mais útil aprender Cantonense do que Mandarim. Mesmo os falantes do Mandarim que vêm viver para Macau sujeitam-se aos costumes, e em vez de impôr a sua língua, aprendem a dos locais. E para eles não custa nada. Custa-lhes menos que a mim. Sortudos.

As diferenças entre o Mandarim e o Cantonense são nítidas, mas os que comparam estas diferenças entre os dois idiomas com o caso do Português e do Castelhano, aceita-se, com as devidas distâncias. Em termos de escrita, são perfeitamente idênticas; ambas são escritas em caracteres chineses, e a única diferença poderá residir no facto de alguns falantes de Mandarim do continente estarem mais habituados à escrita simplificada, que os chineses de Macau, Hong Kong e Taiwan se recusam a adoptar.

O Mandarim falado tem quatro tons, enquanto o cantonense tem sete. Para quem não sabe, o tom diferencia duas palavras aparentemente idênticas aos ouvidos menos treinados. Sendo que os caracteres chineses lidos têm apenas uma sílaba, o tom marca a variação dessa sílaba, atribuindo-lhe outro significado. Sendo que o cantonense tem sete tons, e que um som pode ter sete significados distintos, torna-se mais difícil de aprender que o Mandarim, em teoria. E na prática também.

A melhor forma de aprender a falar cantonense é através do contacto com as pessoas, com os falantes do dialecto. Muitos estrangeiros aprendem rapidamente, e em alguns casos conseguem estabelecer uma conversação apenas poucos meses depois de terem chegado a Macau sem saber uma palavra. Eu estou cá há vinte anos e não consigo atinar com a porcaria dos tons, por muito que me esforçe. Devo ser “tone-deaf”, falta-me o ouvido musical. Há palavras que mal entoadas podem significar um palavrão, e são muitos os exemplos em que os meus esforços produzem a risota de quem me ouve a dizer uma asneira quando queria dizer outra coisa completamente inofensiva.

O número sete, por exemplo, é um dos meus calcanhares de aquiles; “sete” diz-se “tchat” com o primeiro “t” semi-mudo, mas pronunciado noutro tom é um dos palavrões mais feios em cantonense. Para terem uma ideia, imaginem que alguém se enganava a pronunciar “carvalho”. Já estão a ver onde quero chegar. Outro número com que tenho problema é o dois, que se lê “hí”, com o “i” mais prolongado . Não consigo fazer quem me ouve distinguir se estou a dizer “dois”, ou se estou a falar da letra “E”, que se lê também “hí”, mas com a vogal mais breve. A quantidade de vezes em que falhei na pronúncia do nº 2 deixa-me especialmente frustrado.

Mesmo os tais números que me dão chatices, o 7 e o 2, também dão para disfarçar se forem incluídos num número com mais dígitos. Se eu ler o número “87421” (bat tchat sei hí yat), ninguém dá pela má pronúncia. Ainda a respeito dos números, o 4 é considerado maldito para os chineses, pois “sei” significa também “morte”, e os tons são tão idênticos que é impossível distingui-los. O número nove é também algo traiçoeiro, e dependendo da forma como se pronuncia em chinês, “kau”, pode querer dizer algo de muito positivo ou uma asneira. O nove é um número da sorte para os chineses, pois no tom correcto “kau” pode significar longevidade, saúde. Noutro tom é um dos nomes do coiso, tal como o “tchat”.

Dos números que para os chineses representam boa sorte o rei é o 8, ou “bat”. Os colecionadores de notas dão um grande valor àquelas cujo número de série incluí muitos oitos . As nota com um serial que contenha quatro ou mais oitos são raríssimas. Escusado será dizer que uma matrícula de automóvel com o numeral 88-88 custa uma fortuna. Outro número “sortudo” é o seis, que se diz “lok”, que pode também significar “felicidade”. É comum encontrar nos nomes de muitas lojas, ourivesarias em nomes de edifícios e até em nomes próprios. Se acrescentarmos a “lok” a palavra “sik”, que significa côr, temos o verde; “lok sik” é “côr verde”.

Os numerais chineses diferem dos ocidentais, e por vezes torna-se complicado falar de números com os falantes do cantonense. A minha mulher, por exemplo, teimava que a China tinha “mais de dez mil milhões de habitantes”, quando na realidade queria dizer “mil milhões”. Existem nomes para os numerais até mil, mas a partir dos dez mil, a porca torce o rabo. Mil diz-se “yat chin”, dois mil “hií chin” e por aí fora, mas dez mil diz-se “yat man” (一萬), ou seja, uma míriade, uma medida antiga usada pelos antigos gregos e romanos. É comum vermos nas agências de imobiliário anúncios de casas à venda onde se vê o número 200 seguido deste萬. Isto significa 200 vez dez mil, ou seja, dois milhões. Com os chineses, melhor do que falar de números, o melhor mesmo é escrevê-los.

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