terça-feira, 1 de outubro de 2013

A foice foi-se


A imagem da foice e do martelo sobre um fundo vermelho é o símbolo por excelência do comunismo, e adoptado pelos partidos marxistas-leninistas um pouco por todo o mundo. Idealizado pelos bolcheviques russos, a foice representa o campesinato, o martelo o operariado, e o vermelho é sinónimo de rebeldia, de mudança, de resistência. As vítimas dos inúmeros erros dos regimes comunistas ainda tremem perante a imagem, enquanto as novas gerações e os adeptos dos ideais humanistas sobre a retórica vazia consideram-no ultrapassado, uma relíquia digna de constar de um museu como vestígio de um passado cada vez mais distante. Conceitos como “ditadura do proletariado” ou “luta de classes” são conversa de velhos, e quase um quarto de século após a queda do bloco de leste e o fim da União Sovética, insistir nestes chavões é sintoma de teimosia, recusa em abandonar um ideal fracassado, ou até alguma demência.

O comunismo surgiu como um contraponto ao capitalismo, resultado da revolução industrial e o aparecimento de um novo tipo de burguesia. Não há que negar que o capitalismo, que encontra no modelo Americano de produção a sua versão mais pura, ou o liberalismo, um eufemismo usado por quem considera “capitalismo” uma palavra agressiva, cometeu erros de palmatória. A ideia de que alguém pode enriquecer sem mexer um dedo enquanto tem para si outros que trabalham no duro e no fim mal conseguem sustentar-se a si a às suas famílias é errada, sem dúvida. A ambição própria da procura da maximização do lucro através da redução dos custos com a mão-de-obra levaram à tal “exploração do homem pelo homem”, tão bem capitalizada pelo socialismo, que lutou contra esta tendência, incentivando os trabalhadores a agitar a estrutura e exigir condições mais condignas com o seu contributo. A criação de sindicatos, as lutas laborais, a obtenção de direitos considerado razoáveis através de negociações com o patronato – a tal consertação social – foram todas conquistas positivas da esquerda. O pior foi quando o comunismo se tornou na forma de poder, e os exemplos do falhanço da utopia da sociedade sem classes são tantos que nem dão espaço a um debate alargado.

Dos países que se auto-intitulam comunistas, a China é talvez o único exemplo de sucesso. Pelo menos sucesso em termos de consolidação do regime, pois passados 64 anos mantém-se sob o signo da foice e do martelo, e rege-se por uma constituição de teor socialista. O sistema idealizado por Mao Zedong em 1949 foi um desastre, muito por culpa da persistência do fundador da RPC em fazer centenas de milhões de chineses caminhar na mesma direcção, sem levantar objecões ou questionar as directivas, por mais absurdas que parecessem. O radicalismo, a mono-pensamento, o esmagamento da oposição e a rejeição do pluralismo custaram a vida a milhões, que pereceram perante o falhanço rotundo da economia, que se recusava a seguir as regras fundamentais para a sobrevivência de qualquer sistema. Pensar que o povo se contentaria em trabalhar para o estado, comer o que estado lhe punha no prato e dormir onde e quando o estado lhes indicasse sem pedir mais que o estado lhe oferecesse é simplesmente irrealista.

As reformas económicas que se seguiram à morte de Mao e ao fim da infame Revolução Cultural, com a adopção gradual de uma prática mais compatíveis com as regras dos mercados levaram à elevação de todo o potencial humano da China, que apenas em trinta anos passou de uma economia arcaica à segunda maior potência económica mundial. O crescimento desenfreado e a circulação nunca vista de capital levou a que se adaptassem os princípios base do socialismo que entraram na génese da RPC à nova realidade. O aparecimento da classed a burguesia industrial que Mao tanto temia acabou por aparecer, e com ela não faltaram os excessos próprios da ambição e do novo-riquismo. A ostentação dos produtos de marca, a corrupção generalizada, os escândalos sucessivos com membros da elite do partido, as notícias que dão conta dos abusos cometidos pelos seus filhos, que dão a entender que existe um desprezo pelos valores fundamentais do socialismo e um sentimento de impunidade.

Quando Deng encetou as reformas em inícios dos anos 80, os mais conservadores criticavam algumas novidades, como os cosméticos ou a música “pop”. Deng respondia que “eram moscas que entram quando se deixa a janela aberta”. Muito filosófico, mas hoje em vez de moscas entram vespas e mosquitos do Dengue; os miasmas que entraram pela janela vão contaminando o caroço bom dos ideais de igualdade e partilha. Em tempos tornar-se membro do PC era considerado um compromisso com o povo e com o socialismo. Hoje é considerado uma excelente oportunidade de negócio. É como ser membo de um clube exclusivo, um Club Med onde o “dressing code” é o fato castanho. O processo foi tão rápido que não se conseguiu encontrar uma medida, um tecto até onde era possível explorar as possibilidades do crescimento. O copo transbordou. Começa a ser evidente que este “deal” serve muito mais a muito poucos, e muito pouco ou quase nada à esmagadora maioria. Pode-se cortar nas liberdades, censurar a internet ou reprimir a dissidência, mas lá por se tentar tapar o sol com uma peneira, começa a ser cada vez mais evidente que o sol está lá, pelo calor que emana.

A população vai usufruindo dos benefícios do crescimento económico, mas ao mesmo tempo vai tomando a consciência que não são apenas as regras do jogo da economia que precisam de mudar. O partido único vai fazendo o que pode e o que não pode para manter o controlo de todos os aspectos da vida do país, mas falha em dar o exemplo, e os seus métodos começam a parecer demasiado antiquados para as exigências da nova China, da geração que nasceu e cresceu na era da abertura. Não é garantido que depois de 64 anos o regime esteja tão sólido e enraízado ao ponto de poder aspirar à eternização no poder. A base era sólida, mas vai cedendo ao peso do crescimento em altura, desmesurado e mal planificado, sem atender aos pilares que devia supostamente manter firmes e apoiar a estrutura no seu todo. Xi Jingping e o seu executivo vão demonstrando querer alterar esta tendência, repor alguma ordem na casa e devolver a credibilidade à imagem da foice e ao martelo. Mas será que a cárie profunda permite que se salve este dente sem ter que arrancá-lo? O futuro o dirá, e será preciso esperar muito menos que outros 64 anos.

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