terça-feira, 1 de outubro de 2013

E daqui para a frente?


Hoje que se comemoram os 64 anos desde a fundação da RP China, fico a pensar: o que pensaria o seu fundador, Mao Zedong, ao olhar para a China dos dias de hoje? Se não fosse fulminado por um ataque cardíaco e morresse (outra vez), ordenada que os membros do Politburo tivessem as orelhas cortadas e fossem lançados às formigas amarelas. Mas depois de tudo bem explicadinho, ia até achar interessante. O bom do Mao não era parvo nenhum, e gostava de coisas caras que o dinheiro pode comprar, como sapatos de cabedal italianos, mansões com piscina, e gajas. O que o Mao gostava de gajas. Muito dinheiro dá para comprar muitas gajas.

A actual versão da China, uma civilização com mais de cinco mil anos de História, é assente nos princípios do socialismo, do marxismo-leninismo e da ditadura do proletariado, tudo conceitos paradoxais à realidade do país que teve um crescimento económico exemplar desde as reformas económicas implementadas no período que se seguiu aos rigores do maoismo. Actualmente um cartão de membro do PC chinês é uma chave que abre a porta a muitas oportunidades lucrativas, e os seus membros já não conseguem distinguir a foice e o martelo do cifrão. Povo? Pois, pois, “whatever”, depois logo se vê. Primeiro vamos tratar do “business”.

A faceta mais admirável do regime que detém o poder e controla todos os aspectos da vida do país desde 1949, da economia à política, passando pela imprensa e pela opinião pública, é a capacidade de adaptação às mudanças que transformaram a face do mundo nas últimas décadas. O socialismo está caduco? Acrescentemos-lhe “de mercado com características chinesas” e o povo acredita. A internet é uma ameaça ao controlo da informação? Vamos censurá-la e adaptá-la às leis vigentes. A opinião pública desconfia? Vamos urdir uma teoria da conspiração da parte de potências estrangeiras que pretendem tomar o nosso território. Para um patriota chinês que se preze, não há nada pior do que uma potência estrangeira a querer assentar arraiais em território da China. Nesse caso qualquer meio justifica o fim.

Das últimas gerações de dirigentes chineses, que têm vindo escalando na hierarquia do partido único, e indigitados com uma previsibilidade gritante – ao ponto de dois ou três anos antes do termo do segundo mandato do presidente já se saber quem será o próximo – a virtude que mais sobressai é a paciência. A sabedoria milenar chinesa nunca terá sido tão bem aplicada em tempos recentes, e se as actuais gerações não se identificam com as actuais directivas do poder central, em vez de convencê-las aposta-se em educar as gerações futuras no sentido de as acatar sem reservas. O próprio Mao, em inícios dos anos 60, referia-se a Taiwan, a ilha nacionalista, tida por Pequim como uma provincía rebelde, “um projecto a longo prazo” – “O regresso à mãe pátria pode demorar 100 anos”, afirmou o grande timoneiro. Ao contrário dos seus antepassados da era imperial, a China prefere a via da diplomacia à via da força.

O princípio de “um país, dois sistemas”, idealizado por Deng Xiaoping para integrar os territórios de Macau e Hong Kong sem deixar margem para dúvidas quanto às boas intenções de Pequim em matéria de garantias quanto ao exercício das liberdades vigentes naquelas colónias, foi ao mesmo tempo um piscar de olho a Taiwan. No plano a longo prazo dessa integração, Macau tem sido o aluno exemplar, com a simbiose entre a RAE e o continente a resultar em pleno, com a política dos vistos individuais a tornar-se o oxigénio para o pulmão da economia dependente do jogo. Hong Kong, praça financeira mundial com uma cultura democrática herdada dos antigos senhorios ingleses tem dado algumas dores de cabeça, e Taiwan mantém-se num impasse, muito por culpa das fortes raízes criadas pelo Kuomitang, inimigo histórico da nomenclatura do continente. Macau vai-se curvando à generosidade de Pequim, e faz tudo o que pode para agradar, mesmo o que não lhe é pedido.

Esta integração de Macau no primeiro sistema não precisa de ser brusca, nem nunca foi essa a intenção. Não nos deram 50 anos por acaso – podiam não nos ter dado tempo nenhum – se existisse mesmo pressa em ver a região que recuperaram de uma potência estrangeira, tinham-no feito sem hesitar, sem abébias do tipo segundo sistema ou a elaboração de constituições paralelas à que vigora em todo o país. A capacidade de aguardar pela fusão pacífica e voluntária vai-se fazendo lançando as sementes, e não espetando uma troncuda árvore no meio do jardim, esmagando as flores. A política de atribuição de residência através do investimento, com a aquisição de imóveis, é uma aposta clara no futuro; os que ainda olham com desconfiança para o outro lado da fronteira vão cedendo através da miscigenação, da mistura das tintas na paleta monocromática. O que não se conseguir fazer nesta geração, faz-se na próxima, ou na seguinte. Não há pressa.

No dia em que se comemora o atrevimento de um homem que subiu a um palanque da Praça que foi durante milénios a moradia de imperadores, e declarou que o povo chinês se levantava finalmente e estava pela primeira vez unido, sentimos um orgulho que nos deixa na boca um sabor estranho. Como residentes de Macau sentimo-nos parte da grande nação que é a China, e como portugueses sentimo-nos especiais, uma página da longa história do país do meio. Como disse muito bem o dr. Frederico Rato no último programa “Contraponto”, a China legisla em português para a região especial de Macau. E se eles nos acolhem no seu regaço e nos convidam a que nos integremos, quem somos nós para os desprezar, ou rejeitar o seu convite? São 64 anos, apenas a um de entrar oficialmente na Terceira Idade, mas apesar das incertezas, este decano respira saúde. E nunca se sabe se em breve encontra o elixir da eternal juventude. É só fazer o que tem feito: diplomacia a paciência. Muita, muita paciência.

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