quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Os sons dos 80: porcos, feios e maus


Praticamente desde que existe o rock'n'roll, e mesmo antes disso, há artistas que eram considerados "malditos". Desde Bing Crosby, que dava porrada na mulher e nos filhos como se não houvesse amanhã, a Jerry Lee Lewis, que aos 22 anos casou a prima de 13, existiam personagens pouco recomendáveis na vida privada, mas que passavam uma boa imagem como artistas. Outros mais artisticamente ousados, como Chuck Berry e o seu "Ding-a-ling", ou os Black Sabbath, acusados de satanismo ainda nos anos 60, e mesmo os Beatles, que desafiaram as convenções da sua época, tal como os Doors, Rolling Stones, Jimmy Hendrix, Sex Pistols e muitos outros, cada um ao seu estilo. Nos anos 80 tivemos artistas que fizeram sucesso graças à sua postura rebelde ou material controverso, alguns até ao estrelato, como foram os casos de Madonna, Michael Jackson ou Prince. Outros há ainda de que nunca ouvimos falar, talvez porque a rebeldia não veio acompanhada do talento. E depois há os que incidentalmente, ou apenas fiéis aos seus princípios, deixaram a sua marca em forma de borrão ou nódoa. É de alguns desses que vou hoje falar.


Polémico durante toda a sua carreira de mais de 30 anos e encurtada pela morte em 1993 com cancro da prostáta foi Frank Zappa, um semi-deus de todos os poetas e cantores malditos da sua geração, e do que o seguiram. Zappa não fez uso da sua formação clássica (era conductor de orquestra e fã de Stravinsky) em nome do conformismo, e com o seu grupo Mothers of Invention passou a vida a azucrinar os mais conservadores. Ficou famoso o incidente em 1971, aquando de um concerto no Casino de Montreux, na Suíça, quando um fã atirou um "very-light" para o palco e causou um incêndio que reduziu o casino a cinzas. O episódio foi inspiração para o tema "Smoke on the Water" dos Deep Purple. As letras das músicas consistiam muitas vezes de obscenidades, referências a odores e fluidos corporais, fecofilia e outras parafilias, incesto e outras perversões, o que deixou Zappa muito mal visto quer pela igreja, quer pelas "mães" da América. Em 1985 depôs no Senado norte-americano em nome da liberdade de expressão numa altura em que o Parents Music Resource Center, um comité criado por Tipper Gore, mulher do então senador Al Gore fazia pressão sobre a Associação Discográfica Americana para que fossem colocadas etiquetas com avisos em produtos audiovisuais que contivessem obscenidades, referências a drogas, sexo ou a comportamentos considerados desviantes. Zappa falou de "chantagem" e de "censura", mas a sra. Gore levou a melhor. Talvez como castigo, o seu disco "Jazz from Hell", de 1986, foi contemplado com uma dessas etiquetas, alertando para "letras com conteúdos explícitos", mas o álbum era...instrumental. Nem uma palavra, só música. O tiro saíu pela culatra aos conservadores, e Zappa ainda levou o Grammy para melhor intérprete na categoria de "rock" instrumental. E o que terá então dito Zappa à sra. Gore e aos seus amigos? "Suck on that, bitches!"


E assim em 1985 aparecia a infame etiqueta que avisava os pais e educadores para conteúdos impróprios no material discográfico, ora devido ao uso de obscenidades, referências a actos sexuais, drogas ou outra dessas coisas que ninguém gosta (erm). Entre os primeiros "contemplados" com a etiqueta preta e branca onde se lia "Parental Advisory Explicit Content" encontravam-se Prince e o seu lascivo "Purple Rain", os Megadeth com "Peace Sells...but Who's Buying", ou os Guns'n'Roses com "Appetite for Destruction". Em 1987 o "rapper" Ice-T, um dos repercussores do que viria a ser conhecido por "gangsta rap" levou com a etiqueta no seu álbum "Rhyme Pays", e isto foi tido quase como um evangelho. Com o "gangsta rap" a etiqueta foi banalizada, e nesse género passou mesmo a ser uma espécie de selo de garantia de qualidade. Mas falamos de audiovisual, e se no áudio foi assim, o que muita gente não sabe é que a primeira vez que a etiqueta foi utilizada ao nível do visual foi vídeo-álbum homónimo dos...Duran Duran. Isso mesmo, os neo-românticos e meninos-bem sempre limpinhos e com penteados da moda viram a sua videografia censurada devido a cenas de nudez. O video-clip do tema "Girls on Film", que apresento aqui na versão integral, foi tão controverso e "escaldante" que na MTV tinha duas versões: uma para passar durante o dia, e outra pela calada da noite. Ah sim, e também passou no canal Playboy.



Outros porcalhões insuspeitos eram os Frankie Goes to Hollywood, uma banda de Liverpool que obteve grande visibilidade graças ao seu single "Relax", de 1983. Todos conhecemos a música, que é sempre actual - basta fazer um "remix" que se adapte à moda vigente. Só que enquanto nos clubes e nas discotecas a malta "abanava o capacete" com o ritmo dançável de "Relax", ninguém prestava muita atenção à letra, que descreve o clímax de um acto sexual. Senão reparem: "Relax don't do it/When you want to go to it/Relax don't do it/When you want to come" e mais a frente "I'm coming/I'm coming-yeah", ainda "shoot it in the right direction". Quem proferia esta poesia maldita era um tal Holly Johnson, que é declaradamente homossexual, e o tom que dava à canção, assim como o vídeo que a ilustra, sugere que se trata de um encontro sexual entre dois homens, que "relaxavam" de modo a não atingir o orgasmo e assim prolongar a...erm..."brincadeira". Quem detectou a charada foi o DJ da Radio 1, Mike Read, que se recusou a passar o tema por causa das letras, e por causa da contracapa (em baixo), onde se vê um marinheiro a fazer lembrar os Village People, e onde se lê "todos os bons meninos gostam de marinheiros", ou que "estas são 19 polegadas [48 centímetros, o diâmatro do single] que podem ser 'tomadas' a qualquer momento", e incluí ainda um guia pelos bares "gay" de Amesterdão. Posto isto, o tema seria banido pela Radio 1 e outras estações, e até pela própria BBC. Esta era a publicidade que faltava a "Relax", que saltou para o nº 1 da tabela de singles do Reino Unido em Janeiro de 1984, vendendo quase 2 milhões de cópias nesse ano, e chegou a nº 1 também noutros países da Europa e ainda no Eurochart. Foi reeditado duas vezes, em 1993 e 2001, e teve versões gravadas por outras bandas. É considerado o êxito comercial da indústria discográfica mais controverso dos anos 80.


Quem também esteve a contas com a censura foram os norte-americanos The Cramps, uma banda "punk" fundada em 1976 e que durou até 2009 (?!), altura da morte do seu vocalista e líder Lux Interior (nome artístico de Erick Lee Purkhiser). Estes Cramps pareciam saídos de um filme de terror, e seriam com toda a certeza a banda residente dos bailes da mansão da Família Adams ou do castelo do Conde Drácula, fosse isso concretizável. Isso não os impediu de serem mais ou menos famosos entre o circuito mais alternativo, e em meados dos anos 80 obtiveram alguma visibilidade com o seu disco de 1986, "A Date with Elvis" - "um encontro com Elvis". Ora como se sabe, Elvis morreu, apesar das pessoas tantãs que o garantem ter visto (durante um delírio de absinto, se calhar), e sendo que é ainda hoje idolatrado na América em particular, neste tempo tinham passado menos de dez anos desde o seu desaparecimento. Posto isto, "A Date with Elvis" vendeu bem na Europa e foi elogiado pela crítica, mas estava com dificuldade em encontrar um distribuidor nos Estados Unidos - de onde os Cramps eram originários, recorde-se - pois temia-se que os fãs do "king" considerassem isto um sacrilégio. Para piorar as coisas, o primeiro single era este "Can your pussy do the dog?", que em português se pode traduzir para "A tua gatinha aguenta com o cão?", mas além de "gatinha, a palavra "pussy" tem outra conotação, e é um dos nomes pelo qual é conhecida a vagina. Bem, apesar das dificuldades de penetração (eh, eh), os Cramps conseguiram fazer "A Date with Elvis" passar pelo buraco da agulha da censura em 1990. Como se devem ter divertido com tudo isto.


Quem também se divertia às custas de Elvis eram os Dread Zeppelin, uma combinação curiosa de Led Zeppelin com um ritmo "reggae" e cantada por um imitador de Elvis Presley. O "frontman" era Greg Tortell, ou "Tortelvis", um leiteiro obeso que os restantes elementos da banda conheceram quando bateram com o automóvel na sua carrinha do leite. O tema mais conhecido da banda é este "Heartbreaker (At the end of Lonely Street)", um combinado entre "Heartbreaker", dos Led Zeppelin, e "Heartbreak Hotel", de Elvis - com uma roupagem "reggae", lá está. É óbvio que os Dread Zeppelin estavam a brincar, mas foram levados a sério, e desde 1990 gravaram 14 álbums (!), basicamente compostos de temas dos Zeppelin, Bob Marley e os Yardbirds. E os malucos são eles?


Quem não se metia com os fãs de Elvis mas tinha a sua quota de problemas com o público "yankee" era Ozzy Osbourne, um dos personagens mais coloridos dos anos 80. Depois de deixar os Black Sabbath em 1979, arrancou para uma carreira a solo, ajudado pela sua manager e segunda mulher, Sharon, enquanto batalhava contra o abuso de drogas e álcool. Entre 1981 e 1982 demorou a entrar nos eixos: foi detido na Alemanha por fazer saudações nazis e urinar para dentro do copo de um agente da autoridade, detido de novo, e novamente por urinar no monumento dedicado aos combatentes no Alamo, no Texas, e durante um concerto arrancou à dentada a cabeça de um morcego vivo que lhe atiraram para o palco. Famosa era ainda a sua alegada ligação com ocultismo, e em meados da década era alvo da retórica inflamada de Jimmy Swaggart, um famoso televangelista que alegava "ter realizado um exorcismo a um jovem fã de Ozzy, que estava possuído pelo demónio". Esta conotação com Satanás até podia deixar Ozzy indiferente, mas era um homem de família, e ficava chato dar a cara nas reuniões de encarregados de educação com a fama de "Príncipe do Mal". No entanto Ozzy conseguiu capitalizar com a polémica, elevando a sua popularidade a um novo patamar, e ainda se "vingou" de Swaggart. Em 1988 o pastor esteve envolvido num escândalo sexual com prostitutas, foi expulso da sua congregação e apareceu na televisão a pedir desculpas, enquanto chorava baba e ranho. Ozzy pegou em tudo isto e usou no tema "Miracle Man", do seu álbum "No Rest for the Wicked", onde arrasa o televangelista. Entre satânico e hipócrita, venha o Diabo e escolha, e parece que escolheu o hipócrita. Ozzy é hoje o padrinho do heavy-metal, e Swaggart caíu no esquecimento.


Mais directos, curtos e grossos eram os texanos Butthole Surfers, que fizeram da obscenidade e do deboche a sua praia. Basta olhar para o nome da banda para perceber que o seu objectivo não era produzir "hit-singles" e rivalizar com os Bee Gees: Butthole Surfers quer dizer "surfistas do olho do cu". Formados em 1983 na cidade de San Antonio, só adoptaram definitivamente este nome encantador após a edição do seu primeiro EP, que se chama "Butthole Surfers", e antes disso chamaram-se Dick Clark Five, Nine cm Worm Makes Own Food, the Vodka Family Winstons, Ashtray Babyheads, Ed Asner Is Gay, Fred Astaire's Asshole, The Right To Eat Fred Astaire's Asshole, The Inalienable Right To Eat Fred Astaire's Asshole, e outros igualmente simpáticos e bastante comerciais. Definindo-se dentro do género "hardcore punk", os seus concertos chamaram a atenção durante a década de 80 - nem que fosse a atenção das autoridades, pois era habitual acontecerem cenas de violência e "outros incidentes estranhos". O grupo acompanhava a "música" de imagens projectadas numa tela colocada no palco, imagens estas que consistiam quase sempre de acidentes, explosões nucleares, carne a ser moída, escorpiões a atacar as suas presas, reimplante de membros decepados, onde nunca faltava um pénis, episódios da série "Charlie's Angels", etc., ao mesmo tempo que usavam e abusavam de projectores e espelhos reflectores, criando uma combinação que levava alguns espectadores a sofrer ataques de epilepsia. O vocalista Gibby Haynes surgia com uma aparência exótica, e não eram poucas as vezes em que terminava os espectáculos sem roupa. Isto foi apenas até 1986, altura em que contrataram uma "stripper" para se despir nos concertos. Esta "stripper" era mesmo uma profissional, de nome Kathlyn Lynch, e foi contratada a um clube de Nova Iorque chamado Sex World, e depois de se juntar ao grupo passou a ser conhecida pelo nome artístico de Ta-Da the Shit Lady. A baterista dava pelo nome de Teresa Nervosa. Por incrível que pareça os Butthole Surfers gozaram de algum sucesso comercial nos anos 90 com os álbums "Independent Worm Saloon" e "Electriclarryland", ambos com entrada no top-200 da Billboard. Do segundo saíu o single "Pepper", que, pasme-se, foi nº 1 na lista de Modern Rock Tracks. Para ilustrar melhor em que consistia o som dos Butthole Surfers, fica aqui o tema "Mexican Caravan", do seu álbum de estreia "Psychic... Powerless... Another Man's Sac", de 1984.


Para terminar em beleza, falemos dos Mano Negra, banda do carismático e "mucho loco" Manu Chao. A banda foi fundada em 1987 em França por elementos dos Le Casse Pieds e dos Los Carayos (!), e liderada por Manu Chao, um francês com sangue espanhol, e que canta também em inglês, italiano e português. Os Mano Negra retiraram o nome de um grupo anarquista espanhol do início do século XX, e gravaram o primeiro álbum em 1988, intitualdo "Patchanka", que fez logo um enorme sucesso em França. Combinando estilos como punk rock, flamenco, ska, raï, salsa, reggae e ritmos africanos, são considerados uns dos pioneiros da chamada "world music" de fusão, e a sua fama espalhou-se um pouco por toda a Europa continental. Eram também polémicos e desafiavam as convenções, como se pode entender pelo nome que deram ao seu segundo registo de originais, "Puta's Fever" (dispensa tradução). O grupo separou-se em 1995 e Manu Chao prosseguiu uma carreira a solo. Deixo-vos com o tema "Los Indios de Barcelona", do álbum "Patchanka".

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