sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Maria Cascagrossa


Do artigo do Hoje Macau desta semana ("link (ainda) indisponível), só tenho a dizer o seguinte: cada um tem o que merece, e a carapuça só serve a quem a enfiar. Boa noite e obrigado por preferir o Bairro do Oriente. Bom fim-de-semana!

Apresento-vos Maria Cascagrossa, alfacinha de gema de ovo de pata choca. Maria era uma mulher simples, semi-alfabetizada, divorciada com filhos e pinga-amor militante, uma aficionada da astrologia, do sobrenatural, do olho do oculto e outras sandes místicas, mas desinteressada da literatura clássica ou de qualquer outra coisa terrena e mundana que seja preciso puxar muito pela cabeça. Um dia, já às portas da meia-idade, vem parar a Macau, inícios da década de 1990, decidida a aproveitar os últimos ventos de um Império que nunca lhe deu nada a não ser aborrecimentos e desilusões, além da celulite e das varizes, para não falar de uma descomunal rectaguarda, um desafio à resistência de qualquer par de calças.
Chegada à Macau dos últimos seis ou sete anos da administração portuguesa, encontrou um mundo completamente diferente do seu, ela que o mais longe que tinha ido foi à Benidorme de “nuestros hermanos”, e que teimosamente pronunciava “bebe e dorme”. Ao fim de duas semanas estava completamente esclarecida, e já conhecia Macau “de ginjeira” – pelo menos conhecia melhor do que quem cá nunca tinha estado, ou de quem não leu muito sobre o assunto. Ficava encantada com tudo o que via, e ficava estarrecida de bocarra aberta a contemplar os templos, os leões de pedra, tudo o que lhe parecia remotamente diferente do país que tinha deixado a milhares de quilómetros de distância – facto que não se cansava de referir, como quem se dá conta de uma disparidade gográfica que nunca imaginou ser possível para ela. Adorava perder-se no meio das tendinhas do Mercado Vermelho, onde impunha a sua imperial lusitanidade no meio dos chineses, que eram “muito giros”. Quando perguntava o preço de um trapo qualquer, e a vendedora lhe respondia “deiz pataca”, num esforço para se dar a entender e evitar uma conversa de surdos, berrava-lhe na cara: “ahhhhh...fa-la por-tu-guês”, com os olhos muito abertos, como quem se tinha acabado de dar conta dos séculos de presença portuguesa em terras do Oriente, condensados numa simples transação de um pano para limpar o chão.
Tal como todos os portugueses chegados a Macau nos anos 90, conseguiu emprego numa repartição pública, quase por inerência. Quando ia ao “yum-cha” com os colegas chineses, delirava com a mesa giratória, com a variedade e o colorido dos pratos, e improvisava um ar desconfiado, de quem sente a necessidade de perpetuar os velhos tabus da gastronomia ocidental, que presume que os asiáticos comem animais exóticos ao almoço e ao jantar. Quando perguntava “que bicho estranho é este?”, com um ar alarmado, e respondiam-lhe “isso é galinha...”, exclamava: “espantoso!”. Incapaz de juntar duas palavras em cantonês, voltava aos mesmos restaurantes a que tinha ido com os colegas bilingues, e quando tentava repetir o mesmo pedido do dia anterior e lhe traziam outra coisa, reclamava com os empregados, acusando-os de se terem enganado. Berrava e gesticulava, à beira da apoplexia, e pouco ou nada se importava de ser o centro das atenções. Poucos meses depois de chegar foi a Gongbei, do outro lado das Portas do Cerco, onde passou a tarde inteira a comprar porcelanas e pechisbeque. Tirou fotografias de tudo o que via que servisse de prova de que esteve “na China”, e mandava cópias para os amigos em Portugal, como testemunho da sua presença nos confins da Terra, para lá da última fronteira conhecida do mundo civilizado.
Pessoa mundana, relaciona-se com todos, mas gosta especialmente de se dar com a “gente bem”. Inicialmente observava-as, estudanto as falas, os gestos e os maneirismos, que depois imitava – lá por ser difícil livrar-se da casca grossa, podia pelo menos dar-lhe um revestimento de caxemira. Entre o “jet-set”, onde faz questão de se misturar, é denunciada pela postura “maior que o mundo”, assim como pela forma como chupa os dedos lambusados dos croquetes ou de como sorve a bica a escaldar. Humilde por natureza, nunca se acanhou na hora de se meter de joelhos e esfregar com um pano uma nódoa que encontrava no chão, mas desde que tem uma empregada filipina acha-se uma “madama” e arrepia-se quando é chamada de “patroa”. Ela que nunca teve ninguém para lhe abrir a porta, quanto mais para lhe passar a roupa a ferro. A sua simplicidade impede-a de ser cruel com alguém apenas “porque sim”, mas por influência das tais amigas berra com a empregada por tudo e por nada, mas no fim deixa-a levar as sobras do jantar para casa, julgando assim estar a contribuir para o alívio da pobreza no arquipélago das Filipinas inteiro.
Adora que os outros lhe peçam ajuda, nomeadamente financeira; fá-la sentir grande, rebenta-lhe as costuras do enorme complexo de inferioridade de que sofria (e sofre), dá-lhe a provar a doce sensação que os outros endinheirados tinham quando no passado lhe diziam “não“, do tempo em que ela própria andava à míngua. Para ela ninguém é perfeito – porque ela própria sabe que está muito longe de o ser, e por isso mais ninguém se pode achar nesse direito. As mulheres jovens e bonitas são todas levianas, e se têm mais que um companheiro, “abrem as pernas a qualquer um”. No seu caso pessoal – e tem uma contabilidade respeitável nesse departamento – foi tudo em nome “do amor”, da busca incessante pelo ideal romântico, e quando fracassou foi por culpa dos outros, e se as outras são apenas “fáceis”, ela é “uma sonhadora”, que “se apaixona”.
Em Macau sente-se mais intimidada pelas estrangeiras, a que se refere não pelos nomes próprios (alguns dos quais não consegue pronunciar), mas pela nacionalidade. Assim é “a chinesa”, “a filipina”, “a russa”, etc. Isto não indicia necessariamente que Maria seja racista, pois o seu parco domínio de línguas - até da própria – a juntar ao facto de ter vivido dois terços da sua vida rodeada da sua espécie, a “sopeira lusitana”, não lhe permitem entender que existem outros hábitos, culturas ou formas de encarar o mundo diferentes da sua. Do pouco que sabe é que essas asiáticas são umas velhacas, umas destruidoras de lares, e mesmo assim isto depende da “vítima”; se for alguém próximo, sim, a tipa é uma “usurpadora, sempre de olho no homem alheio”. Se é alguém com quem não simpatiza, “a moça não é má rapariga, coitadinha, a outra é que é uma histérica”.
Mas tudo vai mudando, a seu tempo. Maria Cascagrossa aproveita o Outono da vida para viajar, alargar os seus horizontes, chegar onde só ela milhões de outros turistas chegaram. Depois relata tudo ao mais ínfimo detalhe, com o suporte de fotografias banais ilustradas com comentários risíveis, às vezes de uma prosa poética de bradar aos céus. Convencida que está a fazer um favor ao mundo relatando a sua epopeia, fica a pensar que até se podia dedicar à literatura de viagens, tivesse o engenho de conseguir juntar o número suficiente de palavras que dessem frases com sentido. Mas pronto, tiremos o chapéu à “Maria C.”, como gosta de ser chamada. Ou “Sra. Dra. Maria C.”, depois de um daqueles cursos tirados “à pressão” que quase toda a gente tem em Macau. O melhor é não discutir, que é perigoso acordar os sonâmbulos, e no meio daquela mímica toda ainda salta dali um daqueles dedos gorduchos e vaza-nos um olho. Convém dizer-lhe que sim, sim a tudo. Como se faz com os malucos.

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