domingo, 6 de outubro de 2013

Pelo direito à roupa passada


Termino a programação de fim-de-semana com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Tenham uma optima semana de trabalho.

Um dos direitos inalienáveis dos residentes desta RAEM, onde todos somos supostamente livres, responsáveis pelos nossos actos e senhores do próprio nariz, é o de usufruir de um certo nível de conforto, de tempo livre, em suma, de alguma qualidade de vida. Já estamos cansados de falar dos obstáculos com que nos deparamos no dia-a-dia, e nos impedem de considerar Macau o Paraíso na Terra, quando o dinheiro que vai entrando nos cofres da Administração e engordando o erário público seria mais que suficiente para cada residente gozar a vida de um emir. Não podendo aspirar a mais do que esta cidade esgotada, poluída, engarrafada e apertada, resta-nos o consolo de poder ter alguém em casa que nos trate das tarefas que o horário de trabalho não nos permite realizar. Ter um auxiliar doméstico dá imenso jeito, e por uma pequena fracção dos nossos rendimentos, não nos sujeitamos a ter que limpar a casa, fazer a comida, lavar e passar a roupa, ou em muitos casos levar e ir buscar os filhos à escola ou o cão à rua, nuvens cinzentas a que uma empregada doméstica é a resposta na forma de cintilantes raios de sol. Mesmo para quem tem idosos ou pessoas incapacitadas a seu cargo, deixá-las ao cuidado de uma empregada doméstica é mais humano, económico e conveniente do que recorrer a um lar ou centro de dia. Em suma, são tudo rosas, se tivermos a sorte de contratar alguém honesto e trabalhador em que possamos confiar.

Nos tempos da administração portuguesa era fácil a qualquer residente de Macau contratar uma empregada doméstica, e a preferência recaía normalmente em trabalhadoras oriundas de países do sudeste asiático, nomeadamente das Filipinas, e ultimamente com a concorrência das indonésias. No entanto os grupos que representam os trabalhadores locais, que se opõem à contratação de mais trabalhadores não-residentes com medo de uma concorrência que na prática não chega a existir, faz pressão sobre o governo no sentido de limitar as quotas de mão-de-obra importada, e este mesmo governo faz-lhes o favor, como quem dá um osso a um cão que não pára de ladrar, reduzindo as tais quotas e tornando mais complicada a contratação de não-residentes. Enquanto os analistas e outros especialistas nas áreas da economia e dos assuntos laborais, portanto gente entendida no assunto, fala da necessidade de trazer para Macau milhares de trabalhadores do exterior para dar resposta às necessidades do território, os génios que defendem a ladainha do “primeiro os locais” vão achando que estão a fazer um grande favor à população, que assim não tem que de se preocupar com esses filipinos, indonésios e outros indígenas malvados que lhes querem roubar o emprego.

O mais irónico é que nenhum destes residentes tão temerosos dessa vaga migratória está interessada nos empregos que esses imigrantes vêm à procura. Boa sorte em encontrar um residente, com um BIR que lhe garante pelo menos subsídio de desemprego e um cheque de oito mil patacas por ano sem mexer uma palha, aceitar um trabalho em que precise de vergar a mola seis dias por semana, oito horas por dia, e em troca de três ou quatro mil patacas no final do mês. A restauração é uma das áreas que mais tem sofrido com este “aperto” das quotas, e com as rendas que actualmente se praticam nos espaços comerciais, torna-se irrealista oferecer um salário convidativo para a mão-de-obra local. Conheço casos de estabelecimentos do género pequena-média empresa a que foram negadas quotas, e em alternativa indicados residentes inscritos no Fundo de Desemprego. Estes compareciam ao trabalho um, dois dias, e depois não vinham mais, sem pelo menos terem a cortesia de telefonar a avisar. E porque haviam de deixar saber que não estavam interessados? São residentes, ninguém os vai mandar embora. Pesaram o emprego e a subsidio-dependência nos pratos da balança, e descobriram que ganhavam quase o mesmo indo trabalhar ou ficando na cama até ao meio-dia. Os hotéis, casinos e afins, as vacas sagradas da nossa economia, vão recorrendo a expedientes vários para contornar o problema, e ainda beneficiam de alguma imunidade. Mas e nós? O cidadão médio?

Para quem quiser requerer uma auxiliar doméstica, seja a contratação ou a renovação do contrato de trabalho, necessita de se dirigir ao Gabinete para os Recursos Humanos, sob a tutela da Secretaria da Economia e Finanças “para tratar das formalidades administrativas relativas às informações e aos pedidos de importação e de renovação de trabalhadores não residentes destinados ao serviço doméstico”, citando a página electrónica daqueles serviços. A página da internet disponibiliza ainda toda a documentação necessária para o efeito, que além da habitual papelada própria destes procedimentos de pendor acentuadamente burocrático, não exige quaisquer requisitos especiais para a aprovação da atribuição ou manutenção da quota. O que consta do rol de documentação, verificável neste endereço, é perfeitamente normal, apesar do transtorno e da perda de tempo que poderá implicar.

Fiquei a saber estes dias que a um dos meus familiares próximos que se dirigiu a este Gabinete para tratar da renovação do contrato da sua empregada doméstica, que a serve há 17 anos, foi-lhe exigida documentação suplementar, alguma dela tão surrealista que daria para pensar que estavam a brincar, não se tratasse de um departamento público da RAEM. Para justificar a necessidade de manter o vínculo contratual com a sua empregada, repito, de há 17 anos, foi preciso justificar que tem a seu cargo a tempo inteiro ou parcial crianças menores, animais domésticos, e que lhe é impossível tratar de tudo sozinha. Algumas das exigências que lhe foram feitas chegam mesmo a ser questionáveis em matéria de reserva da vida privada. Por exemplo, foi-lhe pedido que provasse a relação familiar com a própria filha, e de que os netos eram mesmo seus netos. Outro caso de que tive conhecimento recentemente envolveu uma jovem que se encontra grávida de sete meses, e foi requerer uma quota para contratar uma auxiliar doméstica que a assistisse durante o período final da gravidez e após o parto, uma vez que tanto ela como o marido trabalham. Apesar de ostentar uma volumosa barriga, foi-lhe pedido um comprovativo de que estava realmente grávida, na forma de uma declaração médica. Compreendo que esta declaração é uma formalidade para juntar ao processo, mas para quê? Se nos é consagrado o direito de contratar um auxiliar doméstico, porque razão se tem que provar aquilo que é, como o nome indica, um “direito”?

Não sei se este perfeito circo em que todos tiraram férias com excepção dos palhaços é uma prática corrente, ou apenas uma infeliz coincidência, um excesso de zelo da parte de alguém que insiste em cumprir à risca directivas emanadas por algum superior que se julga acima da lei. Mas desde quando é que nos foi negada a comodidade de ter uma empregada que nos trate da limpeza da casa, leve os miúdos à escola, passe a roupa a ferro ou nos deixe o jantar na mesa quando voltamos cansados do trabalho no fim do dia? E quem é solteiro e vive sozinho, ou um casal que não tenha menores, idosos, deficientes, cães, gatos ou periquitos a seu cargo? Vai ficar a passar a roupa de castigo? Para quem tiver o azar de esbarrar com este chorrilho de disparates – e mais uma vez, se realmente se trata de prática corrente – e estiver mesmo necessitado de auxílio no trabalho doméstico, não lhe resta senão optar pela via da ilegalidade, do “part-time”, recorrendo aos serviços sazonais de um não-residente a quem só é permitido trabalhar para o seu fiador. Porque dos residentes, já se sabe, não se pode esperar muito mais.

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