quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Não há pão para malucos


Ontem tive uma visita cá em casa, o que desde já explica a hora tardia em que actualizei o blogue. Recebi uma amiga que já não via há algum tempo, e que apenas agora as nossas agendas permitiram um encontro. Preparei uma deliciosa caldeirada de peixe com um sabor muito português (cortesia da empresa Coelho & Dias S.A., que exporta congelados para Macau), jantámos, trocámos dois dedos de conversa, e por volta das onze horas despedimo-nos, que se ia fazendo tarde. Peguntei-lhe se queria que a acompanhasse até à paragem de autocarro, ali perto da Ponte 16, e disse-me que não seria necessário. Levei-a até à porta, “bye bye” até à próxima, e pronto, regressava a paz e o silêncio ao covil do Leocardo.

Sentei-me em frente ao PC para deixar na blogosfera mais uma posta de pescada ou duas, parecidas com aquela que entrou na caldeirada que ainda duas horas antes me tinha assentado no bucho, estalei os dedos qual pianista que prepara o recital, e apelei às musas da literatura de cordel, fazendo a oferenda de um copo largo de vodka com Red Bull e gelo. Não tinha ainda feito o “login”, quando fui interrompido com duas pancadas secas na porta. Levantei-me numa fracção de segundo, como se tivesse sido ejectado de um avião a jacto, e espreitei por cima do vidro da porta. Seria algum palermóide que procurava a malta das obras que habita o dormitório aqui ao lado? Não seria a primeira vez que se enganavam. Mas logo a seguir oiço uma voz trémula e assustada que chamava pelo meu nome. Era a minha amiga, e soava como se algo de terrível tivesse acontecido durante aqueles cinco minutos após ter saído da minha casa.

Ainda mais sobressaltado, desci os dez degraus até à porta da rua em dois pulos e abri a porta, e encontro-a visivelmente abalada, com uma lágrima a escorrer-lhe do rosto. Sem se conseguir fazer entender muito bem, disse-me qualquer coisa sobre “um homem que a seguia”, e fez-me um gesto com a mão, dando a entender que o tal homem de que falava a teria agredido, ou pelo menos tocado. Pedi-lhe que entrasse e subisse, e mesmo descalço fui até meio do pátio para ver se via algo suspeito. Nada. Voltei para casa, dei um copo de água à minha amiga, que já recomposta contou-me que vinha sendo seguida por um homem, e quando apressou o passo ele fez o mesmo, e após o ter tentado despistar sem sucesso, correu de volta ao meu abrigo, sem olhar para trás.

Fiquei revoltado, sobretudo com o desespero da minha amiga, que parecia estar legitimamente assustada. Alguns minutos depois, e vendo que estava já recomposta, ofereci-me para a acompanhá-la até ao autocarro, oferta que desta vez não recusou. Calcei-me, vesti uma camisola, e pelo sim pelo não enfiei uma faca no bolso do trás, que cobra com a tal camisola. Já sei que estou a confessar algo de ilegal, o porte de uma arma branca, e se quiser venham-me prender. Em mais de vinte anos de Macau nunca saí à rua com um corta-unhas que fosse, mas naquele momento – e recordo que era quase meia-noite – não sabia o que ia encontrar, e o seguro morreu de velho. Como diz o povo e muito bem, “os anjinhos estão todos no Céu”, e àquela hora apetecia-me era a secretária de onde escrevo os meus textos, e depois a caminha. O Céu pode esperar.

Levei a minha amiga até à paragem, e pedi-lhe que me seguisse de perto, a uma distância segura, mas sem dar a entender que estávamos juntos. Na eventualidade do indivíduo que a assustou se encontrar nas redondezas, gostaria de pelo menos lhe dar um puxão de orelhas, nem que fosse por ter interrompido a minha paz de espírito, e ter feito uma noite de outra forma aprazível com uma nota tão desagradável. Não vi ninguém, meti a minha amiga no autocarro, e antes de voltar a casa dei uma volta pelas redondezas par aver se encontrava alguém que correspondesse à descrição dada pela minha convidada, que deve ter tido problemas em adormecer, coitada. Era um serviço que prestaria à comunidade se conseguisse pelo menos intimidar o tipo, dando-lhe a entender que as pessoas estão atentas a pervertidos que andam por aí a aterrorizar meninas inocentes. Dez minutos depois deixei de me armar em vigilante e voltei para casa.

Do pouco que a minha amiga me contou do incidente, há um detalhe curioso. Disse-me que quando deparou com o indivíduo, este encontrava-se do outro lado da rua, caminhando na direcção oposta à dela, mas deteve-se e levatou a mão direita, exibindo o dedo indicador e o médio, o sinal de “paz” celebrizado pelos “hippies”. Num mundo ideal isto seria entendido como qualquer coisa de simpático, de inofensivo, mesmo vindo de um desconhecido. No mundo que temos, longe de ser ideal, isto revela algum tipo de psicose, e o facto de ter começado a segui-la comprova isso mesmo: tratava-se de um louco. Não era possível determinar o grau de perigo do indivíduo, mas isto é uma coisa que poucas senhoras que circulem sozinhas na rua à noite queiram verificar, só “para ter a certeza”.

Macau tem a vantagem de ser uma cidade segura a qualquer hora do dia ou da noite, onde é possível circular sozinho e desarmado por qualquer rua deserta, beco ou travessa sem que hajam dissabores. Pelo menos era assim quando aqui cheguei, e achei este facto tão interessante que contava aos meus amigos em Portugal quando lhes escrevia cartas (Lembram-se das cartas? Aquela coisa que servia para as pessoas se contactarem a longa distância antes da invenção do e-mail?). Em Macau chegava a passar por locais ermos, escuros e solitários que em Portugal acarretam o perigo de ser assaltado, agredido, violado ou assassinado na ordem dos 50%. Como referi acima, ontem foi a primeira vez que saí de casa com um instrumento de defesa pessoal, quando em Portugal raramente dispensava o meu canivete de pesca.

Nos últimos anos tem-se verificado uma quantidade de incidentes que se pode considerar alarmante, pelo menos comparando com o tempo em que não acontecia nada, os casos de assaltos ou de violência eram pontuais, e quase ninguém se preocupava ou comentava o assunto. Existem mesmo alguns locais já referenciados como “de risco”, especialmente na zona norte da cidade, e a maior parte dos cidadãos põe as culpas no aumento do número de visitantes do continente, e do crescento fluxo de dinheiro oriundo dos casinos. Teorias com uma elevada dose de credibilidade, e pode-se dizer que isto são ossos do ofício. Não podemos esperar que as autoridades venham com uma fórmula milagrosa que garanta a segurança de todos, quando a quantidade e variedade de potenciais criminosos que atravessa diariamente as Portas do Cerco vinda do outro lado é cada vez maior.

No entanto o perigo pode chegar de onde menos se espera, e com consequências imprevisíveis. Enquanto um simples ladrão, burlão, toxicodependente ou jogador compulsivo procura apenas dinheiro e mais nada, o que se pode esperar de um louco? Mesmo que seja um pobre pateta, inofensivo e bem intencionado, convém não arriscar. Num mundo de gente séria, o melhor mesmo é nem sequer “brincar”, que ninguém está com disposição para brincadeiras, especialmente vindas da parte de desconhecidos. Há coisas com “alguma piada” para alguns (poucos), que para a maioria podem ser entendidas como “assédio”, um palavrão muito sério. É por isso que em Macau não passa pela cabeça de ninguém fazer um programa de “apanhados”, ou de “pegadinhas”, como dizem no Brasil. Voltando a recorrer à sabedoria popular, “não há pão para malucos”, e mesmo que os malucos não gostem de pão, e prefiram antes batatas ou arroz, que os comprem eles, e deixem os outros em paz.

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