quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Lições de cantonense, parte III: boca suja


Tinha uma colega chinesa que estava a aprender português, e achou hilariante o duplo sentido da nossa palavra “broche”, que pode designar um simples alfinete de peito, algo que caíu em desuso, mas que normalmente se aplica para descrever o sexo oral, ou o “felattio”, e que para nós é considerado uma vulgaridade. O entusiasmo desta minha colega fê-la repetir a palavra vezes sem conta, até que lhe expliquei que era considerado vulgar falar de “broche”, e o melhor era passar das palavras aos actos. Perdoem-me a sinceridade porca, mas esta é uma daquelas coisas que dispensam palavras. Assim como para os chineses as nossas obscenidades não têm sentido, pois mesmo que as digam fazem-lo sem a noção do seu significado, o mesmo acontece com os estrangeiros que dizem palavrões em chinês. Podemos estar a passar uma imagem de ordinários sem educação nehuma, mas para nós aquilo não quer dizer nada, e tem até uma certa piada.

Lembro-me de quando o meu filho era pequeno, e na altura semi-bilingue, de o fazer dizer “bater avião” em cantonense. Ele ficou sem entender muito bem o que eu pretendia, mas no fim acabou por juntar as palavras: “ta? ta…fei kei? Ta fei kei!”. Esta expressão significa literalmente “bater avião”, mas é o calão para a auto-gratificação masculina, o que chamamos de “esgalhar o pessegueiro”, para não usar a palavra começada com “p”. Depois da minha mulher nos dar o respectivo raspanete, o meu filho interpretou a situação de uma forma inocente: “pois…bater avião é mau, porque o avião cai e as pessoas morrem”. Sim, sim, claro, `tá bem abelha. Já vos disse que o meu filho tinha apenas 4 anos? Isto é o que se chama de pai irresponsável. Eh…eh…eh…

Algumas das obscenidades em chinês têm um equivalente para a nossa língua, e algum do mesmo teor ofensivo. Um português que domine o cantonense fica tão ofendido com certos insultos como se estes estivessem a ser-lhes dirigidos em português. Entre os mais ligeiros, temos por exemplo “sik si”, ou “vai comer merda”. Escusado será dizer que a merda chinesa cheira tão mal como a nossa, e mandar ir comê-la é considerado uma afronta grave em ambas as culturas. Já o acto de comer uma banana, uma fruta apreciada por todos, é considerado ofensivo para os locais. Dizer “sik chio, lei”, ou “vai comer uma banana” pode-nos parecer uma proposta simpática, vinda de alguém que se preocupa com a ingestão de potássio em doses recomendadas pela nossa parte, mas para os chineses é um desaforo. Suspeito que terá qualquer coisa a ver com a aparência da banana. Para bom entendedor...

Continuando pelas coisas que se comem ou requerem o uso do paladar, e se assemelham a uma banana, temos o interessante "ham tchat". O "tchat", como já sabemos de outras lições, é o c..., e "ham" é a acção de levar algo à boca. Não confundir com "chupar", ou "inalar", que se diz "kap". Fumar diz-se "kap hín", ou "inalar fumo". Esta é a forma mais correcta, a coloquial, mas a mais usada é contudo "sik hín", literalmente "comer cigarros". Quando eu ainda fumava e o meu filho estava a dar os primeiros passos no português, perguntou-me: "Pai, porquê tu comer fumar?". Tão querido, o semi-chinoca. Portanto se "ham" é levar à boca, e "tchat" é aquilo que se sabe, "ham tchat" é o tal alfinete de peito a que a minha amiga do primeiro parágrafo se referia. Outro nome para o sexo oral que implica levar um cilindro carnudo à boca é "hau kau". O membro masculino pode-se designar por "tchat", "kau" ou ainda "lan", mas deste último trataremos mais à frente. Salvo seja, claro.

Um dos insultos mais curiosos, que requer uma análise palavra por palavra é "sì fat kwai". Este "sì fat" é o calão para "rabo", ou "cu". Como vimos mesmo agora, "sì" quer dizer "merda", portanto dá para perceber porque se trata de calão. No entanto "kwai" significa "diabo", "demónio", ou numa intepretação mais moderada, "fantasma". Quando os chineses se apercebem de algo fora do normal, ou se deparam com uma coisa estranha, dizem "yau kwai!", que normalmente se traduz para "tem diabo!". Um tradutor que se preze opta pela versão portuguesa "aqui há fantasmas". É comum ouvirmos este "kwai" nas expressões mais utilizadas para designar os estrangeiros: "kwai-lou" é "diabo branco", ou seja, um ocidental, enquanto "hak kwai" é "diabo preto", referindo-se a um africano. Portanto "sì fat kwai" pode-se traduzir literalmente para "demónio do cu". Em português não faz muito sentido, mas equivale ao inglês "asshole", ou apenas "palerma". E se "hole" é um buraco, em chinês existe ainda "sì fat lou", sendo "lou" precisamente "buraco". Em conclusão, "sì fat lou" é o "olho do cu". O tal que não vê.

Entre os insultos mais difíceis de entender encontra-se um tal de “pok kai”, uma expressão que escutamos durante as discussões mais acaloradas. Literalmente, “pok kai” significa “cair na rua”, o que não se afigura algo de muito grave, pelo menos para nós. Imaginem que numa discussão com a vizinha do andar de cima que tem a mania de pendurar a roupa molhada quando a nossa já está praticamente seca atirar-lhe com um “vai cair na rua”. Ela pode entender isto como algo de pouco simpático, mas dificilmente fica ofendida ao ponto de partilhar a sua raiva com as amigas: “ e sabes o que ele me disse? Para eu cair na rua! Vê lá tu, o porcalhão". No entanto dizer a um chinês “pok kai” é considerado um insulto, digno de figurar no top-10 dos maiores desaforos do idioma cantonense. O mais grave de todos, o que serve como um convite para a troca de chutos e pontapés, é “ham ka chan”, literalmente “que morra a tua família toda”. Isto pode parecer uma parvoíce, mas para os chineses é o ultraje dos ultrajes, a pior coisa que se pode dizer. É o equivalente ao nosso “fdp”, mas mil vezes pior. Podemos pensar em insultos piores que este, mas cada um dá à família o valor que entender.

Entre os que podem ser traduzidos directamente e com os quais nos podemos identificar no sentido destaca-se o “diu”, que se pronuncia “tio”, tal como o irmão do pai ou da mãe. Este “diu” é o equivalente ao nosso “f…-se”, e as variantes têm correspondência para a língua de Camões. Por exemplo “diu nei” é “vai-te f…”, e “diu lei si fat” é a versão chinesa do nosso “vai levar no…”. O expoente máximo do uso deste “diu” é a frase “diu lei lou mou”, que é um insulto dirigido à progenitora, e considerado bastante grave. Pior ainda é se acrescentarmos “chau hai” no final da frase; “diu lei lou mou chau hai” sugere não só que a mãe do visado é uma mulher fácil, como ainda insinua que ela descuida a sua higiene íntima. Penso que não preciso de entrar em detalhes. Curiosamente é frequente escutar este tipo de expressões em conversas entre amigos. Cheguei a assistir a casos onde um grupo de amigos ou colegas que jogavam às cartas exclamarem “diu lei lou mou!” quando faziam uma jogada. Este tipo de “intimidade” é apenas permitida a amigos muito próximos, e dificilmente podemos importar o hábito para a nossa cultura. Imaginem durante uma partida de sueca um amigo nosso jogar um ás e atirar-nos com um “vou f… a tua mãe!”. Não ia acabar em risota, certamente.

Outro insulto que nos arrisca a entrar em vias de facto é “pan tchat”. “Pan” quer dizer “estúpido”, e “tchat” é o infame c… como já referi mais que uma vez. Não soa tão bem em português chamar alguém de “c… estúpido”, mas em inglês faz todo o sentido dizer “stupid dick”. É lógico que esta referência à genitália varia conforme o género. Para os homens diz-se “pan tchat”, mas para as mulheres usa-se “pan hai”, referindo-se ao orgão reprodutor feminino. É mais comum usar esta expressão com os homens, por razões óbvias. Dirigir-se a uma senhora nestes modos é muito pouco cavalheiresco. Só por curiosidade, os testículos, na variante que referimos por c&*õ@s, em chinês diz-se “chon toi”. A palavra “toi” tem o significado de “saco”, portanto já estão a ver onde quero chegar. Pode-se usar como forma de ameaça a expressão “ngo tek pao lei chon toi”, ou “dou-te um pontapé que te rebenta os tomates”. Isto, meus senhores, pensem o que quiserem, é hi-la-ri-an-te. Ahahahah!

O uso de obscenidades ou de expressões vulgares está associado aos escalões mais baixos da sociedade, ou fica apenas “entre amigos”. Não é bem visto dizer palavrões em frente a uma senhora ou um desconhecido. Para quem quiser dar uma de mauzão há um truque que transforma qualquer frase numa obscenidade: basta acresentar “lan” entre as duas palavras quaisquer. Assim “hou tong” quer dizer “que frio!”, mas “hou lan tong” fica “está um frio do c…”. Se alguém nos está a chatear com futilidades, podemos responder-lhe “si tan”, ou “que se lixe”, “faz o que entenderes”. Dizendo “si lan tan” transmitimos a ideia de “está bem , que se f…”. É fácil e divertido, e não custa nada. É “hou lan siu”, ou “engraçado como o c…”.

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