quinta-feira, 3 de outubro de 2013

E no que ficamos, afinal?


O tema das eleições legislativas no último dia 15 e o significado dos seus resultados parece demorar a esbater-se. Isto só pode querer dizer que de facto o impacto do sufrágio em termo de atribuição dos mandatos definidos pela via directa é enorme, quer se concorde ou discorde com as opções do eleitorado. Enquanto fazia a leitura da imprensa em português do território, deparei com este artigo de opinião nas páginas do Jornal Tribuna de Macau, da autoria da sua editor Sandra Lobo Pimentel, que me chamou a atenção. Gostava de poder dizer que foi pelos melhores motivos, mas infelizmente trata-se de uma análise um pouco distorcida do significado dos resultados, do que se disse dos mesmos, e das preocupações de quem faz uma leitura pouco positiva da composição do novo elenco do hemiciclo da RAEM que sai destas eleições.

A autora do artigo começa por dizer que estas são as primeiras eleições legislativas que presencia desde a sua chegada a Macau, o que é o tipo de humildade que aprecio. Para mim estas foram as sétimas, se não estou em erro, mas só comecei a prestar atenção às eleições locais a partir de 2001, quando passaram a ter mais significado. Afinal o eleitorado de Macau passava a decidir uma parte da composição do orgão legislativo local à luz do princípio "um país, dois sistemas", e o tal elevado grau de autonomia de que o território passou a usufruír vem com responsabilidades, e deste sufrágio podem-se tirar várias ilações, desde a cultura política e democrática do eleitorado, até à definiço do rumo que a população deseja seguir no seu futuro. Não cometo a arrogância de afirmar que a Sandra Lobo Pimentel "chegou há dias" e como tal não tem a legitimidade de se pronunciar sobre os resultados. Podia ter chegado na véspera do dia 15 e dizer o que muito bem lhe apetecesse, e ainda respeitaria a sua opinião. O que acontece é que alguns pontos do seu artigo chocam com a minha forma de sentir Macau, a minha condição de residente e de cidadão que quer o melhor para a terra onde passou a maior parte da sua vida, e faz planos de ficar até ao fim. Se faço parte dos "indignados" a que a Sandra se refere, é porque cheguei a acreditar que a população de Macau faria outras opções que não as de há três semanas. Aqui permita-me a arrogância: você conhece muito pouco de Macau.

Em primeiro lugar falemos da análise que faz da vitória de Chan Meng Kam. Estamos de acordo, o líder da plataforma "Cidadãos Unidos de Macau" fez o seu trabalho de casa e actuou como um verdadeiro politico, aproximando-se da população, entrando na sua casa, demonstrando uma vocação populista que faltou a outros candidatos. Nunca duvidei que venceria estas eleições, e para isso basta ler o que escrevi durante a campanha, mas apenas em termos de votos expressos. Contudo nunca pensei que elegesse um terceiro deputado; nem eu nem os analistas ouvidos antes das eleições, e nem o próprio Chan Meng Kam, julgo eu. A única pessoa que ouvi considerar esta possibilidade foi Carlos Morais José, há cerca de um ano, no programa "Contraponto". Era difícil prever este resultado fantástico, uma vez o sistema de conversão dos votos em mandatos vigente em Macau obriga a que um segundo deputado seja eleito com o dobro dos votos do primeiro, e o terceiro com o dobro dos votos dos outros dois. O sucesso de Chan Meng Kam, e isto foi perceptível a olho nu, deveu-se sobretudo à sua campanha mais abrangente, que deixou de se concentrar na zona norte da cidade e começou a abranger a totalidade do território. Os 26 mil votos que obteve não terão sido todos, nem em grande parte sequer, apenas dos seus conterrâneos de Fujian. O trabalho realizado terá convencido outra significante franja do eleitorado, mesmo entre os residentes de Macau de segunda e terceira geração.

Mas vamos passar à frente, nomeadamente à parte em que a Sandra fala do sucesso da candidatura de Mak Soi Kun, figura ligada ao eleitorado com ascendência na região de Cantão. Este personagem, um virtual desconhecido até há meia dúzia de anos, quando era apenas um "cavalo" do empresário da construção civil e actual deputado Fong Chi Keong, garantiu a eleição em 2009, e quando todos esperavam que repetisse esse resultado, duplicou o número de votos e obteve um segundo deputado. Esta foi para mim a maior surpresa destas eleições, e pela negativa. Mak Soi Kun não tem perfil político para merecer este tipo de votação, nem consigo perceber porque carga de água o eleitorado lhe passou este atestado de competência. Mak Soi Kun não fala a Macau, não representa a matriz e o passado do território, nem terá consciência do peso da sua história. O seu discurso é do "pronto, já e agora", o dinheiro fala mais alto, o mais importante é produzir riqueza, o essencial é que os trolhas tenham pelo menos um emprego nas obras, e que a juventude que se está nas tintas para os estudos se consiga encaixar nos casinos. Agora pergunto eu: quem sabe o que significa um acto eleitoral e preza o valor do princípio "uma pessoa, um voto", acha que esta é a opção correcta? Se estamos aqui a falar de política, onde se insere este candidato que falou de tudo menos de política?

A este propósito a jornalista apresenta uma justificação curiosa: o sucesso de Mak Soi Kun deve-se à vantagem inicial que obteve ao distribuir lanches em marmitas de cartão onde aparece sorridente ao lado da sua equipa, e ainda "distribuíu dinheiro", e citando a própria, que citou o comentador desportivo Jorge Perestrelo, "é disto que o meu povo gosta". Mais à frente contradiz-se, e fala do "respeito pela vontade da maioria" como "princípio básico da democracia". Minha cara: que democracia é esta que se compra com paparoca, brindes e dinheiro, ainda por cima com a anuência de quem tem por função garantir eleições transparentes, e fecha os olhos a ilicitudes flagrantes? Tem a certeza que esta é a primeira eleição a que assiste em Macau? Que outras assistiu antes destas? Na Somália, ou em alguma república das bananas? O que quer dizer exactamente com isso de "a democracia e dos altos valores morais não põe comida na mesa"? Se é para ter comida na mesa, não vale a pena ter eleições. Manda quem tem mais dinheiro e quem mais pode "pôr comida na mesa" de quem noutro caso iria votar para escolher um peso que equilibrasse o domínio dos mais ricos nos mais diversos quadrantes da sociedade. Como se isso já não bastasse, ainda lhes dotam da influência política, dando-lhes carta branca para decidir sobre o futuro de Macau, quando essa decisão devia estar nas mãos de Macau. É claro que respeito a decisão do eleitorado, mas assim que sentido faz realizar eleições?

Quando a Sandra tira da cartola o coelho do pragmatismo, fá-lo com desrespeito pela inteligência de quem a lê. A população de Macau não anda a sofrer de fome endémica, nem corre a ir beijar os pés de quem lhe oferece uma tigela de arroz. Graças a Deus ou seja lá ao que fôr. Nem eu nem ninguém das minhas relações se coloca mecanicamente de joelhos e executa felattio eleitoral (ena!) a quem nos aparece pela frente com um molho de notas. Este discurso, aliás muito coerente com a linha editorial do jornal onde foi escrito, seria mais bem recebido caso fosse traduzido para chinês e afixado nas vitrinas das escolas ou dos centros de dia para idosos nos bairros do Iao Hon, Areia Preta, Ilha Verde e Fai Chi Kei. Curiosamente na edição de hoje do mesmo jornal vem Jorge Neto Valente a dizer que receia a descaracterização de Macau, devido à cada vez maior influência dos sectores empresariais com capital no continente chinês. Jorge Neto Valente, sabem? Esse mesmo, que conhecem muito bem, melhor do que eu com toda a certeza. Com toda esta conversa sobre comida na mesa, democracia e respeito pela vontade da maioria, e descaracterização de Macau, para a qual contribui a validação da sua população ao eleger os representantes do capital invasor para o campo da política, estou confuso. Tenho a cabeça a andar à roda. Então no que ficamos, afinal?

3 comentários:

Anónimo disse...

Depois de ler o artigo de Sandra Lobo Pimentel e o seu post, por momentos pensei que afinal tinha sido o Leocardo a presenciar as suas primeiras eleições e não ela. Mais uma vez veio à tona a sua falta de respeito para com a opinião dos outros, a menos que esses trabalhem no seu jornal do coração, o único que lhe dá voz. Tem todo o direito de discordar de quem quiser, mas não tente passar atestados de burrice à malta...leia o que escreveu antes das eleições e hoje omite, certamente por esquecimento. Leio todos os dias os três diários em português e devo dizer que claramente o seu Hoje Macau é o melhor de todos, mas só em grafismo. Tirando as bonitas primeiras páginas, o que é que tem a mais do que os outros dois? Apesar da estima que me merece o seu director, diria mesmo que tem bem a menos. Até poderia ser uma mera questão de gostos, mas sei que é bem mais do que isso... Como percebo o que quer dizer nas entrelinhas, caro Leocardo deixe-me dizer-lhe que anda iludido há muito tempo sobre muitíssimas coisas em Macau, mas desconfio que é por opção própria. E nesse caso temos de respeitar.... respeitar, percebe? Cumprimentos PS- Eu também não concordo com muita coisa que a Sandra escreveu mas vejo pureza na escrita e nada na manga que ponha alguém de cabeça à roda

Leocardo disse...

Interessante, mas ao contrário do meu "post", o meu amigo ou amiga não discute nenhum dos pontos onde discordo da opinião da Sandra. Limita-se a dizer que "parece que sou eu a presenciar as minhas primeiras eleições" e mais nada. O que quer que lhe diga? "Quem diz é quem é, nha nha nha"? O Hoje é que me dá voz e por isso sou obrigado a venerá-los...interessante isso. Leu o Ponto Final de hoje? Abra na página 3 e leia a coluna da direita em cima. Já viu esta capa do Clarim? http://www.oclarim.com.mo/j120629/capa.shtml
Só o JTM é que tapa o sol com uma peneira, e gosta de fingir que não existo. E já agora, de que partes do texto da Sandra Lobo Pimentel concorda exactamente? Os artigos "a", "o", "da" e "de"? Os pontos finais e as vírgulas? A Sandra não tem experiência de outras eleições, nem assistiu à evoluição da política ou da origem e orientação do eleitorado nos últimos 20 anos, claro, mas devo respeitar a sua opinião, especialmente aquela que com muito "fair-play" pede para aceitarmos "a vontade da maioria". Claro que compreendo que todos precisamos de comer, mas tenho pena da autora do artigo, quando precisa de se curvar perante as directivas do seu patronato. É pena.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Concordo em absoluto com o anónimo e com conhecimento de causa, pois já trabalhei nos três jornais em causa. Nunca vi o "amigo" Leocardo em nenhum deles, por isso, não sei onde foi desencantar esse disparate das directivas do patronato. Faça o favor de ter respeito pelos jornalistas de Macau que não merecem ouvir tamanho absurdo. E essa "birrinha" do JTM não lhe ligar já dá vontade de rir....C'est la vie...cumprimentos