sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Deixem este sonho voar


Hoje gostava de falar de sonhos. Não no sentido lato da palavra, que pode designar as ambições e os desejos de alguém, nem sequer da sobremesa que se come habitualmente no Natal. Refiro-me às imagens e sons produzidas e projectadas pelo nosso subconsciente durante o sono. É engraçado como tanta gente pensa ter a exclusividade de alguma característica específica dos sonhos, quando na realidade há muita gente que passa pela mesma experiência. O problema é que ninguém fala dos sonhos, comentaos sonhos, partilha os detalhes, mesmo que sórdidos, abre a janela dos sonhos à família ou aos amigos. Por vezes dá-me a sensação que contar os sonhos é algo sobre o qual recai uma certa reserva. É como mostrar o umbigo: não é obsceno de todo, mas pouca gente o faz. Falar de sonhos é uma boa alternativa às habituais conversas sobre futebol com os amigos, ou sobre o trabalho, quando saímos com os chatos dos colegas, que não sabem falar de outra coisa porque trabalhar é a única coisa de remotamente interessante nas suas vidas. Por vezes gostava de interromper as conversa sobre o “penalty” mal assinalado ou das últimas velhaquices do chefe e perguntar: “E sonhos? O que têm andado a sonhar ultimamente?”.

Os sonhos encerram um mistério que os nossos maiores crânios nunca conseguiram desvendar. O que significam? Porque sonhamos? Como explicar alguns sonhos mais bizarros? De facto este é um dos departamentos que não conseguimos controlar ou dominar. Ninguém escolhe sobre o que vai sonhar, como quem escolhe do menu da gelataria, É sempre uma incerteza, o filme que vai passar enquanto dormimos. Uma das obras mais conhecidas de Sigmund Freud, um dos maiores génios da humanidade, é “A interpretação dos sonhos”, onde o psiquiatra se propõe a encontrar explicações para o inexplicável. Os sonhos so uma daquelas coisas que “nem Freud explica”, apesar do próprio ter feito uma tentativa. Alguns charlatões vêm com “significados” tabelados para os sonhos, considerando-os “premonitórios”. Não acredito que os sonhos se realizem, por muito que nos agrade a ideia de ver passar para a realidade aquele sonho que tivemos com a Scarlett Johansson, quando ela se abraçava a nós e nos sussurava com um gemer lânguido: “possui-me, possui-me…ou morro”. O mesmo serve para os sonhos maus; quem fica a matutar sobre um pesadelo ou um sonho mais incómodo que teve na noite anterior ou há alguns dias, é porque não tem mais que fazer.

Quando o meu filho tinha três anos, perguntei-lhe se “não via coisas enquanto dormia”. Ele sorriu, olhou para mim espantado e exclamou: “como é que tu sabes???”. O pequenote, apesar da sua inocência, já tinha a consciência de que as emanações da sua mente durante o estado inconsciente eram do foro privado. Talvez tenha ficado surpreendido ao perceber que aquilo era comum a todos os seres humanos, e até alguns animados dotados com a capacidade cerebral para o efeito, e naquela idade é difícil explicar este tipo de coisas de uma perspectiva séria. Para quê, se não é um problema? Toda a gente sonha, e quando alguém afirma com convicção que na noite passada “não sonhou”, está equivocado: sonhou, mas não se recorda. Não está a mentir; é apenas ignorante. De facto há sonhos mais nítidos que outros, e de que nos recordamos quase na totalidade quando acordamos, só que depois – e fenómeno curioso, este – esquecemo-nos de quase tudo passados poucos minutos, quando já plenamente conscientes o cérebro retoma a sua actividade normal. O escritor inglês Samuel Taylor Coleridge escrevia sobre aquilo que sonhava, mas com recurso a um auxiliar pouco recomendável; depois de fumar ópio, adormecia e delirava semi-inconsciente, e quando recuperava os sentidos escrevia sobre o que acabava de visualizar. Um dia em 1797, enquanto escrevia o poema Kubla Khan, foi interrompido por um visitante da localidade de Porlock, e ao interromper a escrita para o atender, o sonho desvaneceu-se, e o poema nunca ficou acabado. Ainda hoje os artistas referem-se a este episódio, designando por “pessoa de Porlock” qualquer um que interrompa a sua inspiração criativa. Akira Kurosawa realizou em 1990 o filme “Dreams”, alegadamente inspirado nos seus próprios sonhos. Duvido que o mestre japonês tivesse conseguido recordar-se dos seus sonhos ao ponto de fazer com eles um filme. Se calhar também fumava ópio.

Quem leva uma vida serena e sem grandes sobressaltos tem sonhos normais, dentro do que se pode considerar “normal”. Outros há que passaram por experiências traumáticas, como guerras, acidentes graves, sequestros, abusos físicos ou sexuais, penas de prisão, ou assistido a situações bizarras, que impliquem extrema violência ou lhes tenham causado um transtorno de que se recordam frequentemente. Para estas pessoas ir dormir pode significar uma noite mal passada, e muitos sofrem de insónias. Nestes casos os pesadelos ou a recordação dessa experiência inserem-se na categoria de “doenças do sono”. Os sonhos aqui são um reflexo da realidade de que não se conseguem alhear, e em muitas dessas patologias recorre-se a medicamentos hipnóticos, barbitúricos opiácios comummente conhecidos por “comprimidos para dormir”, que lhes garantem uma transe mais profunda e minimizam o choque. Para quem tem a sorte de dormir descansado, os sonhos podem ser sobre qualquer coisa; algo que se passou naquele dia, há dias, semanas ou meses, a projecção de uma realidade alternativa a um acontecimento passado, ou a antecipação de um evento futuro – que é diferente de uma “premonição”, que como já referi, não acredito. Pode ser sobre qualquer coisa e sobre nada. Às vezes é um sonho parvo, sem sentido. No fundo é isso mesmo que os sonhos são: lixo jogado fora pelo nosso subconsciente durante o período de repouso. É como que uma reciclagem. Se às vezes faz sentido, ou se trata de um sonho vívido onde nos identificamos e a pessoas que conhecemos ou com quem lidamos no dia-a-dia, é porque são uma visão não-abstracta. Da mesma forma que só conseguimos imaginar o que nos foi dado a perceber pelos sentidos, só sonhamos com o que já conhecemos.

Assim como qualquer pessoa normal, tenho sonhos que gostava que nunca mais acabassem – salvo seja – ou que me deixam com uma leve sensação de tristeza, e até de perda, quando desperto de volta para a realidade. Na sexta-feira voltei especialmente fatigado do trabalho, e adormeci pouco depois do jantar. Ia trabalhar no Sábado, mas como não tinha horário para cumprir, deixei-me simplesmente levar pelo sono, com o televisor ligado. Acordei depois das 5 da manhã, comi uma sanduíche de queijo e bebi um Sumol enquanto assistia ao Portugal-Argentina em hóquei, mas menos de uma hora depois voltei para a cama, e adormeci de novo. Já passava das nove da manhã quando a chegada da minha parceira me interrompeu este segundo sono, e durante essas duas horas e pouco tenho a ideia de que dormi profundamente, e tive um daqueles sonhos tão intensos, em que se tem a sensação de estar ali, de corpo inteiro e pés bem assentes no chão, em pleno controlo de todas faculdades. Não me record de quase nada, claro, mas penso que já terão passado pelo mesmo, e este é o tipo de sonho “tramado”, que por vezes acontece depois de desligarmos o despertador e voltar a dormir. É complicado usar esta justificação para explicar um atraso ao serviço. Há sonhos ainda que não me estão a correr nada bem, mas em que estou a controlar as incidências, consciente que é “apenas um sonho” – e dou por mim a dizer isto aos “bonecos” que me tentam lixar a vida no meu imaginário. Outro detalhe engraçado é a som do telefone ou da campaínha, que soam na nossa casa e entram depois no sonho. Uma vez deixei o despertador a tocar durante minutos, porque no sonho passou a existir também um despertador que tocava. Quando um jovem e em alguns casos um adulto têm um “lapso” e urinam na cama, muitos contam que estavam a ter um sonho onde estavam precisamente…a urinar. Não tenho pesadelos, por hábito, e como já referi, domino mesmo os sonhos mais desagradáveis. O mais próximo de um “pesadelo” que tenho recorrente é a sensação de estar em queda livre, e por vezes chego mesmo a agarrar-me ao cobertor ou à almofada. Isto acontece sobretudo durante o período inicial do sono.

E pronto, creio que todos temos as nossas histórias para contar sobre os sonhos, e longe de mim querer transformar isto num consultório de psicanálise. Não tenho qualquer pudor em fazer as revelações que lêem acima, e como disse no início deste já longo texto, é pena que os sonhos não sejam um tópico de conversa mais frequente entre amigos e familiares. Há sempre qualquer coisa que fica de um sonho que podemos partilhar, e por vezes é até bastante interessante. Adoro quando alguém me conta um sonho “esquisito” que teve na noite anterior, e acho graça como damos connosco a sonhar com pessoas em situações pouco habituais às que presenciamos na vida real. Só mesmo nos sonhos as coisas e as pessoas podem aparecer fora de contexto. Tenham todos sonhos felizes, pois como o nome indica, é algo que nos torna “feliz”, mesmo que seja apenas no mundo do faz-de-conta. Para os que têm pesadelos persistentes, bem, as melhoras. Quando estiverem a sonhar com o vosso próprio funeral (aconteceu-me uma vez), lembrem-se disto: se estivessem mesmo mortos, muito provavelmente não estariam a sonhar.

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