quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Sim, mas...



O atentado de ontem em Paris que custou a vida a 12 pessoas chocou a França, o mundo, e gerou uma onda de solidariedade à escala global. O móbil dos atentados e a profissão de quatro destas vítimas abriu uma discussão sobre a liberdade de expressão: três homens, alegadamente terroristas islâmicos, entraram nas instalações de uma revista satírica que por variadas vezes usou o Islão para fazer chacota, e dispararam sobre tudo o que mexia e iam encontrando pela frente. Entre as vítimas estão quatro profissionais da imprensa mais ou menos conhecidos - tinham pelo menos uma respitável legião de seguidores - e a forma como tudo se passou, a rapidez e o choque que nos transmite a imagem do "silenciamento pelo chumbo" deixa-nos indignados e tristes, mas também revoltados. É sobretudo este último sentimento, o de revolta, que por vezes impede que se faça a necessária ponderação que nos permita racionalizar uma agressão que tem tudo menos de racional. Se um estranho chega junto de nós e nos dá um soco sem que consigamos encontrar uma razão para a sua atitude, o mais natural será retaliarmos dando-lhe também um soco - nem que apenas para evitar que eles nos dê um segundo logo de seguida. Quem me disser que "vai para casa tentar entender as razões do agressor", ou que persistiria em encontrar a via do diálogo, mesmo depois de mais agressões, só pode estar a mentir. Se o problema for o tamanho ou a força, procura-se uma autoridade, ou alguém que venha em nosso auxílio. O período de três dias de luto decretado pelo governo francês bem podia ser interpretado como a tal ida para casa que o exemplo que acabei de dar não nos permite. Esta agressão foi colecta, mesmo que indirectamente. Reagir colectivamente e de cabeça quente só vai deixar as coisas pior do que estão.

Da indignação maior que foi o atentado, surgiram outras mais pequenas, mas que nem por isso deixam de causar grandes transtornos, especialmente partindo de situações que poderiam ser facilmente evitáveis. A mensagem da eurodeputada Ana Gomes, que reproduzo em cima neste parágrafo é um exemplo disso; desconheço qual seria a intenção da senhora, que não considero um exemplo de integridade, se me permitem o desabafo, mas tresanda a aproveitamento político de uma tragédia. O mesmo se poderá dizer da reacção de outras latitudes do espectro político, quer francês, quer europeu. Não precisei de escutar a primeira intervenção de Marine Le Pen para adivinhar qual seria a sua estratégia: a da generalização, da mobilização contra aquilo que ela considera "o verdadeiro problema", e depois ouvir o seu discurso em tudo idêntico ao do seu pai, só que mais polido e sem a placa dentária a tentar fugir-lhe da boca, confirmou-se a minha suspeita. Reparem como ela fala em nome de todos, todos sem excepção, e chega mesmo a fazer um ultimato aos que ela chama "irmãos muçulmanos", mostrando que agora os "seus" estão unidos na condenação ao atentado, e se eles não estão do seu lado, estão do lado do inimigo. O grande problema da extrema-direita, bem como o de todas as restantes facções radicais é o mesmo de sempre: pensam que toda a gente é tanto ou mais ingénua do que aqueles que os apoiam. Qual o muçulmano, pense ele o que pensar do que aconteceu na quarta-feira, que acredita nas boas intenções dessa senhora?

Tivemos um incidente, triste, o pior que se podia esperar do comportamento de um ser humano, mas isolado. Três indivíduos não representam dez ou vinte, quanto mais os três milhões de franceses seguidores do Islão, ou de uma maneira geral os mil milhões de islâmicos em todo o mundo, e que tantos resolveram de imediato apontar o dedo a condenar, atribuindo a eles o ónus da culpa da acção barbária de tipos que tem todos os traços de um criminoso comum - chamem-lhes "jihadistas" ou aquilo que quiserem. Tudo bem, acenem com o facto do atentado ter sido "comemorado" em alguns pontos do mundo islâmico. Com o vosso dedo apontado à cara deles, que não têm nada a ver com isto, queriam o quê? Que se metessem joelhos e pedissem desculpa? E isto vindo de pessoas que se acham mais civilizadas e humanistas que esses "barbáros seguidores da sharia", e ainda se orgulham disso. Meus amigos: há dois ou três séculos, quiçá até menos, estávamos no mesmo ponto daquilo que hoje consideramos "barbárie", e que nos chega pelos media na forma de burqas e chicotadas. Se tiverem uma avó ou outra familiar com 70 ou mais anos de idade, perguntem-lhe o que lhe aconteceria se há 50 anos resolvesse juntar a reunir com as suas semelhantes e exigir a criminalização da violência doméstica, acesso ao emprego nos mesmos termos dos homens, ou qualquer outro direito que as gerações pós-abrilistas dão como garantidos.

Quando vocês usam o vosso direito de criticar abertamente a Igreja Católica, ou chamam a atenção para os escândalos da pedofilia e outros que tais, o que acham que fica a pensar um daqueles católicos praticantes dos mais tontinhos, dos que fazem o sinal da cruz cada vez que escutam um palavrão, que sussurra para cima como se Deus fosse andar com ele à porrada contra vocês? Fica a pensar em churrasco, com vocês no espeto. Claro que só posso especular, pois não tenho provas que me apoiem caso queira afirmar categoricamente. Mas o que posso eu fazer se os computadores só foram inventados no século XX? Fosse fazer um "blogue" com papel, tinta e pena nos tempos do Santo Ofício, e acabávamos os dois numa linda pira incendiária. Já experimentaram discutir religião com esta gente? Já assistiram a como chegam a ficar possessos perante a própria idiotice, quando defendem conceitos absurdos e facilmente desmontáveis, encurralados na sua própria crença caduca? Vós que ledes, sabeis e sois do mais literado que há, acham mesmo que existe lavagem cerebral eficaz a um ponto de alguém levar uma vida a cumprir tudo, mas mesmo tudo o que está escrito num livro com mais de mil anos, exactamente e sem mudar uma vírgula? Os talibans, os aiatolas e todos esses tristes cometem aqueles atentados à dignidade humana, socorrendo-se de argumentos chocantes, porque estão convictos que "é aquilo que Deus quer", e sem tirar disso qualquer dividendo. A sério? Marx tinha razão em boa parte quando chamou à religião "o ópio do povo", mas muito antes dele houve um senhor com mais razão ainda e que ainda se torna difícil desmentir o que nos deixou escrito. Chama-se Nicolau Maquiavel - se não o conhecem, procurem conhecer.

Agora para mim o ponto mais importante de tudo o que tem a ver com factores externos ao atentado, aquilo que os americanos designam por "aftermath", o que vem depois das grande tragédias. Aqui há pano para mangas, e poderia entrar em discussões fúteis sobre certas presunções feitas após o atentado, mas levantar o dedo acusador e abrir uma nova ferida onde já existe uma tão difícil de fechar faria de mim uma pessoa tão má como as que pretendia acusar. Basicamente gostaria só de deixar dois ou três pontos que considero essenciais deixar bem claros para referência futura, se alguma haverá: primeiro considero este acto hediondo um atentado à vida humana, e é isso que interressa, e para as famílias que choram agora os mortos não há "heroísmo" que os leve de volta ao seu convívio; em segundo lugar gostaria que as pessoas que falam em "defesa do valor da liberdade de expressão" primeiro fizessem uma análise interior, e depois respondam a isto: outra reacção que não seja da família do repúdia, da indignação, do nojo, do choro, com lágrimas autênticas ou de crocodilo, e da raiva a este atentado não é permitida? Se não é, então é uma liberdade de expressão muito miudinha, esta pela qual dão murros na mesa com tanta energia; finalmente, lembrem-se que estejamos onde estivermos, nunca estamos 100% seguros, e apanhados pela cegueira ensandecida dos loucos, pouco importa a sua origem étnica, nacionalidade, confissão ou causa pela qual ele ou eles pensam que pessoas inocentes têm que contribuir com a própria vida. Penso que para essa esmola, ninguém dá.

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