quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Os suspeitos do costume



Em primeiro lugar gostaria de chamar a atenção para a violência das imagens recolhidas esta tarde em Paris, França, onde se viveu mais um dia negro por culpa do terrorismo: um grupo de três homens armados entrou na sede do jornal semanário Charlie Hebdo, disparando indiscriminadamente e matando 12 pessoas, entre as quais quatro jornalistas, ficando ainda feridas outras onze. Durante o ataque ouviram-se gritos de "Allahu Akbar", ou "Alá é grande", em árabe - estavam identificados os "suspeitos do costume". O presidente francês François Hollande tem a certeza que se trata de um ataque terrorista, e temem-se mesmo réplicas, ficando agora o país em estado de alerta, reforçando a segurança em locais de culto, estações de tomada e saída de passageiros, e outros locais onde possam ocorrer grandes aglomerações de pessoas.



Este foi o incidente mais sangrento registado em solo francês desde 1989, e na sua capital desde o massacre de Paris em 1961, quando no auge da guerra franco-argelina a polícia usou fogo para dispersar milhares de manifestantes, tendo atingido mortalmente perto de duas centenas deles. Curiosamente dos três  suspeitos já identificados, dois são argelinos: Said Kouachi e Chérif Kuoachi, sendo o terceiro um sem-abrigo de 18 anos de idade que mais tarde se viria a saber ter o nome Hamyd Mourad. Os três indivíduos, que ainda se encontram a monte, chegaram perto das 11:30 ao local do atentado, e conseguiram entrar no edifício depois de terem ameaçado uma mulher que ali trabalhava e que se tinha ausentado para ir buscar a sua filha ao infantário. Uma vez dentro do prédio nº 10 da Rue Nicolas-Appert, armados de espingardas semi-automáticas Kalashnikov, uma caçadeira e um lançador de morteiros, os suspeitos dispararam durante cerca de cinco minutos, pondo-se em fuga numa viatura diferente daquela com que chegaram. É mais que provável que o ataque tivesse sido meticulosamente planeado com alguma antecedência, a julgar pela forma expedita e directa com que os seus autores actuaram.


O Charlie-Hebdo é uma publicação satírica publicada desde 1969 até 1981, altura em que faliu, regressando em 1992, mantendo-se até aos dias de hoje - ou talvez não, pois este poderá muito bem ter sido o seu fim, pelo menos por enquanto. A revista, que contém sobretudo ilustrações, tiras de banda desenhada e textos humorísticos, e se há algo de que não pode ser acusada é de ter uma agenda política: dispara tanto à direita, como à esquerda, como ao centro, e afirma-se acima de tudo anti-religiosa. Há quem estabeleça ligações dos seus autores com a extrema-esquerda, ou quem os classifique apenas de anarquistas ou simplesmente apolíticos e laicos. Ultimamente era evidente uma intensificação da abordagem à temática do Islão, sempre notícia pelas imposições da sua doutrina considerada pela maioria do mundo Ocidental como sendo arcaica, e que amiúde dá lugar ao debate sobre o receio de uma eventual imposição de alguns dos seus costumes. Num país onde em 2012 existiam mais de 3 milhões de muçulmanos, quase metade deles nascidos fora do território nacional francês, a convivência inter-cultural decorria pacificamente, pelo menos em comparação com outros países europeus que por vezes são notícia devido a focos de intolerância religiosa.



A sátira ao Islão e ao profeta Maomé foi inaugurada em Setembro de 2005 pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, também ele satírico, com a publicação de 12 desenhos alusivos àquela religião que causaram a ira dos seus seguidores. O caso dividiu opiniões, havendo quem considerasse a provocação desnecessária, e quem analisasse a polémica do ponto de vista da liberdade de expressão como valor fundamental, não devendo existir restrições ao exercício do mesmo. Como já devem ter percebido, sou por esta última interpretação desse valor, atendendo ao devido protocolo, e com "fair-play", é claro. Quer o Jyllands-Posten há quase 10 anos, quer o Charlie-Hebdo ontem, perceberam também que por vezes há um preço a pagar pela liberdade - e isso é mau, quando a liberdade já está paga e é dada como uma garantia. Este era o aspecto da sede do jornal dinamarquês ontem após o atentado de Paris, e de ter decidido tomar medidas especiais de segurança, no caso da tragédia ter "inspirado" outros a tentar o mesmo em solo escandinavo. Gato escaldado...



Estes são os quatro mártires da liberdade que cada um tem de criticar dentro dos limites da lei tudo o que seja passível de crítica. O primeiro a contar da esquerda era o actual director do Charlie-Hebdo, Stephane Charbonnier, mais conhecido por apenas "Charb". O jornalista sabia que estava a lidar com gente perigosa, pois ultimamente fazia-se acompanhar de um guarda-costas, que ontem foi também uma das vítimas mortais do atentado. O Charlie-Hebdo já tinha sido alvo de uma tentativa de atentado em 2011, através de uma carta armadilhada. Não posso concordar de todo com quem defende que as vítimas "tinham consciência" de que algo deste género lhes poderia acontecer caso teimassem em provocar o Islão. Isto é demasiado sério para ser visto do prisma da "justiça poética", ou algo que lhe valha. Pode ser que tenham incorrido no desrespeito a uma crença, e ofendido os seus seguidores, mas fizeram-no dentro das regras, e dentro daquilo que lhes era permitido fazer - foi uma liberdade adquirida por outros antes deles, e que só lhes cabia perservar. Aquilo que eu penso pouco importa para este caso, mas se querem mesmo que vos diga, este é um preço demasiado alto para alguém que não merece que o paguemos. Eu simplesmente ignorava estes tipos, e deixava-os ficar de rabo espetado a falar para o ar ou para uma parede. Em vez de quatro vezes por dia façam-no oito vezes, que assim chateiam menos. Voltarei a este tema mais tarde, de uma outra perspectiva.

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