sábado, 31 de janeiro de 2015

Trabalhador não-residente. Repito: NÃO-residente


A polémica da última semana foi protagonizada pela deputada Kwan Tsui Hang, veterana representante da Associação Geral dos Operários e líder da União para o Progresso e Desenvolvimento. A sra. deputada defendeu um aumento das taxas de acesso a cuidados de saúde por parte dos trabalhadores não-residentes, que segundo ela estão a aproveitar-se de um recurso destinado aos residentes de Macau e pago por eles através dos seus impostos. A sua principal preocupação prende-se com a especialidade de obstetrícia, pois do total de nascimentos na RAEM no último ano, 22% foram de mulheres não-residentes. A deputada considera que este número é excessivo, e que tem implicações directas quer no número de camas disponíveis, quer na qualidade dos serviços prestados às mulheres de Macau. Este tema, que já abordei de uma outra perspectiva, requer uma análise e um tratamento muito cuidadosos, pois mexe com questões do foro humanista. É preciso sempre deixar claro que não sou diferente da maioria dos seres humanos normais e com o mínimo de sensibilidade, identifico entre as minhas qualidades a compaixão, reconheço os méritos do mutualismo, enfim, situações de discriminação e tratamento diferenciado com base na origem, etnia ou condição social causam-me sentimentos de revolta e levam-me a pensar que de "humanos" temos apenas a classificação entre todas as outras espécies. Só que não posso embarcar na galera da indignação desta forma tão categórica, meus amigos. Já sei que este é um tópico que convida e desenvolver uma argumentação que nos deixe com a imagem de pessoa de bem, ou inspira a rasgos de prosa poética, inflama o espírito e tudo isso, mas não seria honesto da minha parte apoiar um julgamento de valor com base apenas na emoção. Se isso faz de mim uma pessoa má, peço desculpa.

Em primeiro lugar nada do que a deputada Kwan Tsui Hang afirmou é revestido de falsidade, nem ela tenta sequer manipular números e factos para validar os seus argumentos. Se a quiserem acusar de alguma coisa, pode ser de mais uma vez atribuír a má gestão dos recursos ao número de não-residentes, que não sendo residentes e por isso não podendo usufruír de muitos dos mesmos direitos que a maioria da população de Macau, são pessoas, e aqui estamos a falar de recursos que todas as pessoas necessitam, independente da sua situação legal. E isto aplica-se aos transportes e a todo o resto, incluíndo zonas de lazer. Em segundo lugar a sra. deputada foi eleita por residentes de Macau para ser a sua representante, e para o efeito ocupa dos lugares do hemiciclo ao mesmo tempo que tem na cidade um ou mais escritórios onde recebe os seus eleitores, escuta os seus problemas, e no caso de encontrar uma preocupação comum a muitos deles, procura levar o caso à apreciação do hemiciclo. Este é o busílis da questão: a deputada Kwan Tsui Hang não está especialmente preocupada com as suas consultas de obstetrícia, e apenas transmite um sentimento generalizado - se perguntarem a 10 residentes de Macau aqui nascidos e criados o que pensam das declarações de Kwan Tsui Hang, pelo menos 7 ou 8 concordam e assinam por baixo, e mesmo que não o fazem estão-se simplesmente nas tintas. Isto é, até o problema lhes dizer respeito, é lógico. Se nas palavras da deputada existe algo censurável é o facto de pedir que se aumente ainda mais as taxas, pois isso dá a entender erradamente que o problema do acesso aos cuidados de saúde em Macau tem a ver com os não-residentes.

É aqui que se devia ter em conta o que pensa a população de Macau, e é possível que ainda exista gente que não tenha percebido isto: estamos em Macau. A nossa perspectiva humanista e solidária das coisas é uma medida aplicável à realidade onde crescemos, onde aprendemos a cultivar estes valores. Sei que estou a chover no molhado, mas nunca é demais repetir que a China, e só a China, tem uma população maior que a Europa (Rússia incluída) e os Estados Unidos juntos. Os problemas da China e tudo o que tem a ver com a população têm uma dimensão que não se coaduna com a nossa indignação. Fosse tão fácil obter os mesmos benefícios que os residentes no que toca aos cuidados maternais e eventualmente obter o estatuto de residente "juris solis", e teríamos miríades de mulheres do continente em final de gestação a atravessar a fronteira e a vir dar à luz em Macau. Aliás esse foi um problema concreto em Hong Kong, que levou mesmo C.Y. Leung a fazer de uma das suas primeiras medidas o controlo da imigração do outro lado da fronteira nos casos de mulheres em situação pré-natal - e a população da RAEHK aplaudiu a medida. Mesmo em Macau o Hospital Kiang Wu tem uma ala especial para assistir parturientes não-residentes origináias do continente, onde cobra mais do que aos residentes. E assim chegamos ao ponto essencial: a deputada Kwan Tsui Hang não especifica de que tipo de não-residentes se está a referir, mas a julgar pelos números (1100 mulheres) a sua preocupação não será exactamente com as filipinas e indonésias que nos passam a roupa a ferro em casa, ou que de alguma forma contribuem para o progresso do território mantendo-se há vários anos em situação legal, sem que no entanto lhes seja dada a oportunidade para obter a residência e gozar dos mesmos direitos de outros que talvez tenham contribuído muito menos que eles - o grosso do problema estará com as imigrantes do continente chinês.

Os não residentes de Macau que têm filhos "que nasceram em Macau no hospital onde nascem os filhos de quem tem filhos em Macau" (?!), não casaram "no mesmo sítio onde casam as pessoas que casaram em Macau". O casamento é um privilégio reservado aos residentes, bem como outros benefícios são apenas reservados aos residentes, e Macau não é caso único no mundo onde isto acontece. Não conheço nenhum país ou território que permita que estrangeiros venham casar e ter filhos no seu território, e usar este facto para reclamar ali residência e gozar dos mesmos direitos de todos os outros residentes. Entendia se esta questão fosse discutida ao nível dos residentes não-permanentes, vulgo "yellow card", que usufruem de quase todos os benefícios dos residentes permanentes, e em muitos casos chegam nas mesmas condições dos TNR, com a diferença de virem requisitados, e não em busca da sorte. E de facto dá-nos pena observar as dificuldades por que passam alguns TNR, muitos chegados através de agências de recrutamento no seu país de origem, pagando pequenas fortunas e ficando à mercê de agentes pouco honestos. Contudo sabem bem ao que vêm, têm plena consciência de que a sua permanência depende do seu emprego e do seu "sponsor", e é disso mesmo que o "blue card" se trata: de um título de permanência. Sim, torna as pessoas meros utilitários, incentiva a exploração do trabalho precário, deixa-os vulneráveis e sem capacidade negocial, tudo isso, mas qual é a alternativa? Nada. E é mentira que "não podem ficar doentes", pois o contrato obriga a entidade patronal a comprar um seguro, mas se este não aceita que o empregado adoeça, isso não será culpa do sistema, pois não?

Seria o ideal que fosse criado um sistema que atribuísse a residência a TNRs que tenham permanecido legalmente no território e provem ter dado um contributo válido, e tenho defendido isso várias vezes. Nem seria muito difícil criar esta figura, mas aí está, existe falta de vontade política porque ao mesmo tempo seria uma decisão impopular, e o que vamos fazer? Abrir a cabeça das pessoas de Macau e meter-lhes lá dentro que indonésias, filipinas, vietnamitas e restantes trabalhadores migrantes também são pessoas? Kwan Tsui Hang fez declarações que só podem ser entendidas como populistas, porque sabe perfeitamente que não está nas suas mãos resolver um problema que lhe é transmitido pelos que apelam à influência que pode ter - é da sua competência dar eco a estas opiniões, goste-se ou não do tom em que se apresentam. No entanto tenho a certeza que a deputada nunca cometeria a ousadia de discriminar um residente permanente de acordo com a sua origem ou credo, pelo menos abertamente. O que é "perigoso" é sugerir o contrário, ou misturar algo odioso como Auschwitz a uma questão desta natureza. Essa é que é a verdadeira "pequenez". Às vezes fico a pensar se este desfasamento da realidade de Macau é apenas para efeitos melodramáticos, ou se é mesmo ignorância. Desconfio que são ambas: a primeira conscientemente, e a segunda nem por isso.


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