sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O perfeito anormal



A intervenção do deputado Fong Chi Keong na última terça-feira na Assembleia Legislativa aquando da votação na especialidade da Proposta de Lei da prevenção e correcção da violência doméstica causou ondas de choque que em em outras jurisdições que não a nossa já teriam feito rolar algumas cabeças. Aparentemente não há maneira de nos habituarmos à boçalidade e à dislexia do sr. deputado nomeado para esta legislatura por Chui Sai On, que deve ter suspirado de resignação após o incidente - apostar em Fong Chi Keong é como jogar roleta-russa com um revólver onde cinco das seis câmaras estão carregadas. O mais curioso é que não só no meio de todo o esterco que representa o discurso do deputado existe um ponto válido, como ainda Fong Chi Keong representa uma franja respeitável da sociedade. Chamem-lhes antiquados, trogloditas, ou se quiserem recorram a um eufemismo, como fez Leonel Alves ao apelidar o pensamento de Fong Chi Keong de "retrógrado". Para mim quem estava ali a discursar no hemiciclo da Praia Grande era Archie Bunker, da série "All in the family" - lembram-se dele? Sim, o machista, racista, um preconceituoso Neandertal auto-denominado "conservador e defensor dos valores da família". Ou lá está, na versão chinesa, da "harmonia".

O discurso de Fong poderá ter alguns adeptos, como alguém disse, e bem. Ou poderia, não fosse pelo mensageiro que passou a mensagem: a lei que agora foi aprovada na generalidade apenas a abstenção do deputado que fez provavelmente o discurso mais mirabolante da história do hemiciclo tem vários pontos onde se poderiam levantar dúvidas legítimas. Poderiam, no Condicional, e a condição era que fossem abordados de forma séria, o que se tornou impossível com a intervenção de Fong Chi Keong. Acreditasse eu facilmente em teorias da conspiração, e diria que o deputado estava a soldo dos defensores da criminalização da violência doméstica para desacreditar qualquer um que tivesse reservas a esse respeito. E mais uma vez o populismo prevaleceu sobre a política: tolerância zero, onde antes não existia crime. Dá a entender que se deu um passo civilizacional tremendo, apenas com paralelo no fim da prática da necrofagia entre os primeiros hominídeos. Fico a torcer para que a lei sirva a sua finalidade essencial: proteger as vítimas de violência doméstica e outros abusos continuados, e inibir os agressores destas práticas desumanas. Olhando por alto para o texto da proposta de lei fico pelo menos com a noção de que se nada mudar em termos de mentalidades, vamos ter muita gente a começar a comer o pão que o diabo amassou.

Depois das declarações de Fong, surgiu a indignação ao metro e ao litro, o repúdio autenticado, as opiniões que ninguém pediu. Antes de me acusarem de ser "do contra", permitam-me que faça esta pergunta: essa necessidade de demonstrar a indignação deve-se a algum recalcamento? Macaquinhos no sótão? É óbvio que ninguém no seu perfeito juízo vai ficar do lado de declarações daquela natureza - mesmo que concorde com elas, o que já de si deve causar confusão na cabeça de quem defende os valores expressos pelo deputado. Imagino os maridos que resolvem querelas domésticas ao tabefe, e cujas mulheres até já consideram isto "normal". Sim, eu sei, é escandaloso, mas digam isso a elas, e não a mim, que sou mais vítimado que propriamente agressor - coacção psicológica não deixa nódoas negras por fora, pois então. Sabem o que faço quando a patroa está "com os azeites"? Vou dar uma curva, e passo uma procuração à parede mais próxima para se encarregar da psicanálise. Mas aí está, as palavras do deputado Fong Chi Keong só reforçam a ideia de que a violência doméstica só vitima as mulheres. Claro, os homens com dois palmos de testa podem ter ficado embaraçados com a "fama" que o deputado lhes atribuíu, mas a revolta, essa, é um exclusivo das senhoras. Ainda hoje no Telejornal da TDM deparei com isto:



(E pronto, já vão dizer que isto é retaliação pelo boicote que me fizeram as Amazonas dos media locais, adiante...) Mais do que demonstrações de repúdio, declarações de vontade e abaixo-assinados que não vão dar em nada, é preciso ir mais além - não vai ser por existir um papel assinado por 5, 10 ou 20 mil pessoas a dizer que o deputado Fong é uma cavalgadura que lhe vão deixar de fazer reverência quando aparecer para almoçar no "yum-cha". A este propósito gostaria de chamar a atenção para o artigo de Eric Sautedé na edição do Macao Daily Times de hoje: o deputado faz estas afirmações a cobro da imunidade de que goza da sua condição de legislador, do respeito como homem de negócios que granjeou, mais pela fortuna acumulada do que propriamente do pelo que diz, que no fim é o que menos importância tem.

E o idiota afinal é útil, que o diga Leonel Alves, que salienta que o tipo "dá jeito", enfim, na hora de irem todos ganhar umas maçarocas. Deve ser por isso que Song Pek Kei, a quem os não-residentes tanto incomoda, ou ainda Wong Kit Cheng , que é, pasme-se, vice-presidente da Associação das Mulheres, nada disseram - só posso deduzir, pela medida da lógica que por aí vigora, que as duas gostam que lhes cheguem a roupa ao pêlo. Angela Leong ficaria mais incomodada se Fong Chi Keong estivesse a fumar na sala, certamente, e os democratas nada disseram, talvez prevendo que o exmo. sr. Presidente da AL os mandasse calar, mas já quanto ao outro, bem, "não controla o seu pensamento" (até a "liberdade de expressão" foi aqui chamada ao barulho, imaginem). Resta saber quem é que o sr. deputado Fong Chi Keong representa? Ninguém? Meia dúzia de pessoas? Fica a pergunta no ar dos comuns mortais, e o cheiro a podre no ar do hemiciclo da (ir)responsabilidade (a)política.

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