sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Panela de (ex)pressão



E aí está o momento da semana que varia entre o mais ou menos aguardado e o indiferente para algumas (poucas) dezenas de leitores no Bairro do Oriente: o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Recordo que vou estar ausente entre Domingo e quinta-feira, portanto vou tentar deixar o maior número possível de postas irrelevantes durante o dia de Sábado, e ainda se possível algumas no Domingo de manhãzinha. Bom fim-de-semana!

O homem livre é o que não receia ir até ao fim da sua razão.

Jules Renard


Agora que está mais ou menos assente a poeira levantada pela tragédia da semana passada em Paris, e dado tempo para se respeitar o luto pelas vítimas, é altura de retirar algumas ilações, nomeadamente do significado que teve este lamentável episódio do qual se conta um total de 20 mortos. Tudo começou na redacção de um conhecido jornal satírico, onde um grupo de homens (pesadamente) armados cometeu um atentado que tirou a vida a 12 pessoas, incluíndo a de quatro “cartoonistas”. Os dois homens viriam eles também a perder a vida dois dias mais tarde, após as autoridades terem encontrado o seu paradeiro, e pelo meio deram-se mais seis fatalidades, num período de três dias de terror para a França, que deixaram a sua população em estado de choque e que geraram uma onda de solidariedade em todo o mundo livre.

Fiquei triste pela perda de vidas humanas e a primeira percepção que tive foi que, depois, o mundo se ia tornar um local ainda pior do que já é. Os autores do atentado do dia 7 foram identificados como seguidores da religião islâmica e mais tarde viemos a saber que tinham ligações a células terroristas. Não foi necessário conhecer os pormenores para que grupos que vivem do ódio étnico e religioso se colocassem na linha da frente da indignação, aproveitando a sede de justiça popular para retirar dividendos políticos. Não faltou quem aderisse ao populismo, indiferente ao facto de também estes grupos terem sido por vezes alvo da sátira dos malogrados “cartoonistas”, que reprovariam este tipo de reacção à forma como perderam a sua vida em nome da sua arte, da sua profissão.

Perante tão triste notícia, fez-se o diagnóstico mais elementar: tratou-se de um atentado à liberdade de expressão. Concordo com esta ideia, mas não posso deixar de manifestar algumas reservas, nomeadamente no que à definição de “liberdade de expressão” diz respeito. Condenar quem se recuse a demonstrar alto e bom som a sua revolta – mesmo que isso não signifique desculpar os terroristas – e julgá-lo na Praça Pública como “inimigo da liberdade” é uma corrupção da noção que devíamos ter da liberdade de expressão, ou de qualquer outra: ninguém deve ser obrigado a exercê-la e, caso decida fazê-lo, deve ser sem limites de qualquer ordem. “Liberdade de expressão” não depende do que se diz ou do que se escreve: aceitar este princípio implica ficar sujeito a ouvir e ler o não se gosta e, dentro desse salutar círculo, tem direito a exercer o contraditório e tudo dentro dos limites da lei, é lógico. Mas o principal ponto que me leva a evitar juntar-me a esta “caravana” é a forma como alguns entendem a legitimidade de quem exerce a liberdade de expressão.

Tanto em Portugal como em Macau não faltou quem se pusesse em bicos de pés para afirmar o seu apoio incondicional à “liberdade de expressão”, visto ser esta a opção politicamente correcta. Falando de Macau, onde eu próprio exerço o meu direito à liberdade de expressão, e para tal recorro aos canais que me são permitidos (caso contrário não estaria agora aqui a escrever estas linhas), a contabilidade neste departamento anda muito, mas mesmo muito desorganizada. Não sou ninguém para andar a dar lições de moral, mas gostaria de recordar certas cabecinhas pensadoras que a liberdade de expressão não é um exclusivo, nem requer que se esteja encartado para que se faça uso dela – é uma liberdade que todos podem (e devem) tomar, independente daquilo que V. Exas. pensam.

É evidente que as vítimas do atentado de Paris agiam ao abrigo da lei, do direito que lhes era conferido, mas não me recordo do Islão lhes ter dado liberdade para os satirizar; aliás se há algo que demonstram amiúde é exactamente o contrário, mas sendo esta uma liberdade conferida aos autores daquela publicação, fizeram-no mesmo conscientes do perigo – pode-se dizer que caminhavam “na beira da estrada”, ou “na contramão”. De um modo abrangente, tenho pena que no Islão exista tanto fanatismo e congratulo-me de viver numa sociedade tolerante. Em Macau, o direito à liberdade de expressão está contemplada na Lei Básica, tal como outras liberdades que tanto prezamos, e a Igreja Católica, aquela com que mais nos identificamos, pauta-se hoje por um carácter humanista, dizendo-se aberta à crítica. Foi com tristeza que assistimos não há muito tempo à quebra destes compromissos por estes agentes em conluio, com a censura de um profissional da imprensa e o despedimento de um académico, quando tudo o que estes fizeram foi no pleno exercício da sua profissão e à luz das liberdades que lhes são garantidas – a eles e a todos, no fundo. Os paladinos da liberdade de expressão que agora dizem ser Charlie, não foram na ocasião Zé Miguel, nem Eric, e em muitos casos remeteram a interpretação da liberdade que agora defendem com unhas e dentes para o âmbito das instituições em causa. Pena, foi mesmo pena.

Há quem pense que o mundo não cresceu, mas eu reparo que o pântano já transbordou, e quem tem a responsabilidade de se primar pela honestidade e tentar elevar o nível de exigência, contribui antes para um mundo pior, um mundo execrável. Mais do que um mundo que anda para a frente ou para trás, este é um mundo ao contrário, onde a fraude é premiada, e há quem diga que é “do melhor que se faz no mundo”; não no outro mundo, mas neste, onde as “top-models” passam fome, apesar de haver quem a combata à escala do outro mundo, bastando para isso prender milhares de colheres de metal umas às outras. Sim senhor, belo exemplo que nos chega de quem alegadamente recebeu uma educação esmerada, ao abrigo de todas as liberdades, mas comporta-se como um aleijadinho que terminou a corrida muito depois dos restantes participantes, e ainda espera que lhe digam que “é o maior”, com palmadinhas nas costas. Eu deixava-vos a rir de vós próprios, mas duvido que encontrem motivo para tal. Não penso que a liberdade de expressão tenha ficado “ferida de morte“ com aquilo que muitos consideram antes de mais nada um atentado à vida humana, até porque não falta quem agora se disponha a dar continuidade à publicação francesa. Deste lado é que a liberdade de expressão anda moribunda. E sem sinal de melhoras.

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