segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A perdição do humor


Começo a ficar triste com o tipo de humor que se tem feito ultimamente em Portugal. É tão mau que dá pena. Já fui a velórios mais divertidos que as apresentações de alguns dos humoristas que temos hoje. Já sei o que vão dizer, que estou a ficar velho, que os meus pais e os meus avós também não achavam graça ao humor do meu tempo, e todos esses clichés da teoria do caos e do conflito de gerações. E de facto devo andar desactualizado e a ficar gágá, pois alguns dos humoristas da nova geração fazem um sucesso enorme. E posto isto, lamento pelo país em geral.

A Câmara Municipal de Albufeira realizou uma série de espectáculos de Ano Novo, que incluía um Festival de humor a que deram o nome de "Solrir" (o que já começa por não ter lá muita piada) com a participação de Aldo Lima, João Seabra, Ana Arrebentinha, Rui Xara, Serafim, e Nílton, um dos apresentadores do programa "Cinco para a Meia Noite", e cabeça de cartaz do certame. Antes disso há ainda a exibição do espectáculo "Cancro com humor", de Marine Antunes, cujas receitas de bilheteira revertem a favor da Associação Oncológica do Algarve.

Começemos por esta última. Marine Antunes é uma jovem de 22 anos de que já falei aqui no blogue, que sofreu de cancro quando era criança, sobreviveu, e criou o blogue "Cancro com humor", onde propõe o riso como terapia para encarar aquela terrível doença. Não discuto as propriedades benéficas do humor e do riso na auto-estima dos doentes oncológicos, mas a forma como é feita aqui é que considero bastante discutível. Por exemplo, num dos monólogos a Marine diz que as únicas prendas que oferecem a um doente com cancro são "chinelos de flanela; faça frio ou calor, sempre chinelos de flanela". Ai sim? E onde é que isto é suposto trazer boa disposição a alguém que está a sofrer de cancro? Mal posso esperar para ouvir as piadas sobre a radioterapia. E a fase terminal? Deve ser uma barrigada de riso. Mas pronto, as pessoas toleram, mesmo que não achem lá muita piada, e o dinheiro reverte para o combate à doença, portanto tudo bem, ficamos assim.

O Nílton é um humorista de que até gosto, pois mesmo quando não tem piada consegue sr profissinal, e até disfarça com aquela cara de parvinho. Na reportagem da RTP feita a propósito deste "Solrir", vejo-o dizer uma piada onde sugere que devia ser criada uma "polícia do chapadão", e assim cada vez que alguém se comportasse de maneira pouco civilizada, chegava lá o agente e dá-lhe um chapadão. Depois dá um exemplo: "cada vez que no supermercado abrisse outra caixa e viesse um gajo lá de trás da fila e meter-se à frente sem pedir licença a ninguém, pás!, levava um chapadão". O quê? Quer dizer, se alguém por acaso chegar com um cesto de compras a uma caixa onde não há ninguém, tem que pedir autorização aos que estão à espera nas outras filas? Uh? Se não há ali ninguém, nem lugares marcados, qual é o problema? E um "chapadão"? Há mesmo essa necessidade de recorrer à violência por uma coisa de nada?

Outra piada do Nílton, em jeito de mensagem positiva, foi que "não devemos levar a vida tão a sério, porque para os daltónicos, por exemplo, o cubo mágico está sempre resolvido". Ah! Bem, é verdade que os daltónicos não distinguem as cores, mas conseguem diferenciar os tons, até no cubo mágico. O seu mundo não é monocromático. Isto faz-me lembrar de quando os meus amigos da escola contavam aquela anedota parva: "Porque é que o Hitler se suicidou? Porque viu a conta do gás". Eu destestava parecer um chato, mas o "gás" a que se referem, o que se usava nos campos de concentração, é um gás venenoso, o Zyklon-B, e não o gás da companhia, pelo que isso da "conta do gás" seria impossível. Quando se faz um cómico deste tipo, de observação, é preciso sustentá-lo em factos concretos, e daí distorcê-los para chegar ao humor. Dizer disparates é insultar a inteligência de quem nos escuta.

De seguida vi um excerto da apresentação de Aldo Lima. Nunca simpatizei muito com o personagem, mas recordo com algum carinho aquela rotina que ele fez sobre as touradas, já lá vão alguns anos. Ali apareceu vestido de campino, ou pescador, não dá para saber muito bem, e com um sotaque açoriano ridículo dizia qualquer coisa como: "E o Bolo Rei? Já viram que eles fazem um buraco no meio, e assim economizam na massa? Uh? Ah pooois...uh? Uh?". Uh uh o quê ó palerma? Deixa mas é as drogas e vai trabalhar que tens bom corpinho para isso. A seguir foi a vez de Rui Xará (ou João Seabra, sei lá) que mandou uma piadola que até me fez sorrir: "Ouvi dizer por aí que Portugal vai voltar aos mercados. Dá-me vontade de lhe pedir: olha, já que vais aos mercados, traz cerveja". Não sei se sorri por impulso, por ter achado um micrograma de graça ao rapaz, ou se foi por comiseração. Pensando bem deve ter sido por esta última razão, pois agora que penso bem, lembro-me de ter murmurado "coitado..." depois de sorrir.

Tivemos bons humoristas no passado, e temos alguns igualmente bons no presente. Os nossos pais tiveram o Raúl Solnado, nós tivemos o Herman, com "O Tal Canal" a marcar a geração agora na casa dos 40, e mesmo o "Sabadabadu", com esses monstros sagrados da comédia portuguesa que são Camilo de Oliveira e Ivone Silva, era muito mais engraçado do que muita coisa que se faz actualmente. Hoje temos os Gato Fedorento, e mais um ou outro números decentes. Mesmo a tal equipa do "Cinco para a Meia-Noite", onde se inclui o Nílton, consegue resultados hilariantes quando acerta com a sintonia. O problema é que agora temos "humoristas" a mais. E ponho humoristas entre aspas porque na verdade são apenas uns tipos que fazem umas palhaçadas para meia dúzia rir, e esquecem-se do essencial: para singrar no mundo do espectáculo existe uma requisite que eles não têm, e que se chama "talento".

Para fazer humor - que requer alguma arte, tal como fazer amor - é preciso dar às audiências aquilo que as faz rir, e não aquilo que achamos engraçado nós próprios. Rotinas do tipo "por acaso já repararam que...", ou "não sei se já foram ao..." e outras do género, servem que propósito, exactamente? Não fossem essas perguntas retóricas, e a reacção seria "sim, vimos, e depois?" ou "sim, fomos, e o que é que tem de especial". No caso da negativa saía um "não...nunca reparámos, deves estar a delirar, ó palonço". É que assim qualquer um consegue ser um humorista. Até eu. E já que a Marine faz piadas com os doentes oncológicos, eu fazia humor dirigido às vítimas de paralisia cerebral. Mesmo que eles não entendam nada, estão sempre a fazer aquela cara de riso, e portanto ia ser um sucesso! Ouch! Esta foi forte, não foi? Sou um malvado. A piada dos chinelos de flanela é que é. Ah...ah...ah...

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