segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Eusébio, o rei


Transversal. Foi esta a palavra que mais se ouviu na morte de Eusébio da Silva Ferreira, que nos deixou às primeiras horas de Domingo, aos 71 anos. Eusébio é transversal a todos os clubes e aos seus adeptos, quer sejam eles benfiquistas com ele próprio, sportinguistas ou portistas. Nunca os três rivais estiveram tão unidos na hora de lamentar o desaparecimento físico do "Pantera Negra". É transversal a todos os sectores da sociedade, escalões sociais, a homens e mulheres, miúdos e graúdos. Palavras para quê, quando o país inteiro assistir a um miúdo com não mais de dez anos que chorava a morte de Eusébio, ele que nunca o viu jogar, e até o seu próprio pai não devia ser ainda nascido quando as luzes da ribalta se apagaram para o maior jogador português de todos os tempos. É ainda transversal a raças, credos, cores políticas ou convicções ideológicas. Mesmo quem despreza o mediatismo do futebol não fica indiferente à figura de Eusébio, um homem com que era impossível não simpatizar, e que por acaso se celebrizou como jogador de futebol. Mais importante que tudo, Eusébio era transversal ao mundo português em particular, e ao mundo inteiro em geral. Poucos portugueses mereçeram ou mereçerão alguma vez tanto destaque na imprensa internacional na hora da sua partida. Eusébio foi o maior embaixador de Portugal no mundo, e nas muitas horas de cobertura televisiva que a RTP tem dado ao evento da sua morte, essa é uma evidência que fica bem patente no discurso de todos que estão gratos ao nosso herói. As comparações com Nelson Mandela, também desaparecido recentemente, são inevitávais em termos de figura consensual; a luta de Mandela foi pelos direitos civis, contra a segregação e o ódio racial. A luta de Eusébio foi pelo emblema do seu clube, para alegria dos adeptos deste, e pela selecção do seu país, do nosso país, de todos nós.

Eusébio foi um rei, e hoje, no Dia de Reis, falemos do nosso rei. Não faltaram os palermas da ordem que em vez de ficar calados preferiram dizer disparates a propósito de sua alteza. Sabem de que estou a falar, e apesar de nos dar vontade que existisse um castigo para este crime de lesa-majestade, o Eusébio com toda a certeza os perdoava. O Eusébio perdoou sempre toda a gente, porque era um homem bom, que não se achava um predestinado ou uma força da natureza. Nada disso. O Eusébio só ia lá fazer o que sabia fazer melhor, e não é isso o que todos queremos da vida, e de preferência sem que nos chatêem? Eusébio não era letrado, ele próprio o admitia. E depois? Não me lembro de o ver a mandar palpites, e era o tipo de pessoa que preferia ficar calado a dizer disparates - tanta gente que podia aprender com ele, que não ligava aos livros. Ele queria saber era da bola. Querem falar de bola? Falem com o Eusébio, e sobretudo falem DO Eusébio. As histórias pitorescas que se contam da sua grandeza são contadas pelos outros. Nunca vimos o Eusébio a vangloriar-se dos seus feitos. Tudo o que sabemos foi-nos dito por companheiros de jornada, por adversários, pelos amigos e pelas pessoas que com ele privaram. E muito ficou por dizer, talvez mais por vergonha do que por omissão. Conta-se de quando o rei jogava no U. Tomar, na fase final da sua gloriosa carreira, um guarda-redes fanfarrão alegava que a pernas já gastas de Eusébio não tinham força para lhe marcar um "penalty". O "pantera" levou a bola para a entrada da grande érea, colocou-a em cima da meia-lua e disse-lhe: "eu para ti marco daqui e tudo". E o pateta foi buscá-la ao fundo das redes. Como é que sabemos disto? Não pelo próprio Eusébio ou pelo guarda-redes atrevido, mas por quem assistia. Testemunhas da grandeza de Eusébio.

Eusébio é o símbolo do Benfica, um clube com que não simpatizo nada, nada, mas mesmo nada. Mas é por isso que tenho motivos para odiar Eusébio? Claro que não. O Benfica era a sua família, e ele e todos fazemos o melhor que podermos pela nossa família. Os rivais do Porto e do Sporting nunca desejaram que o Benfica não tivesse Eusébio, mas preferiam ser eles a ter o Eusébio. É como um brinquedo que o menino rico tem e nós não, mas preferimos vê-lo a brincar com ele do que a vê-lo partido. Ninguém ficava chateado quando o Eusébio marcava contra a sua equipa. Afinal foi o Eusébio, portanto não foi por maldade, foi por dever. O Eusébio não marcava contra o adversário, mas sim pelo seu clube. A sua outra família era Portugal, e Eusébio era um grande português. Deu tudo por Portugal, sofreu como jogador e como adepto, e era ele quem mais vibrava com as vitórias e chorava com as derrotas. É uma crueldade e uma injustiça chamá-lo de "mascote" - ele era antes o guru. Acolhia debaixo das suas enormes asas todos os que chegavam ao Benfica, os mais novos, aqueles que como ele chegavam das ex-colónias, ou os mais humildes, ainda anões lutando para se adaptar a um mundo de gigantes. Na selecção recebia todos da mesma forma, viessem eles de que clube viessem. Era o "pai" do futebol português, aquele que mais sentia o peso da camisola.

A primeira vez que vi Eusébio foi no Montijo, tinha eu dez anos, num jogo particular entre a equipa da minha cidade e as reservas do Benfica. Eusébio estava ali sentado na bancada lateral dois degraus acima do local onde eu estava sentado. Estava ali como espectador, misturado com o adepto comum, com um casaco de cabedal castanho-escuro e óculos escuros, compenetrado no jogo e sem estar à procura de protagonismo. Outros miúdos à minha volta sussurravam "está ali o Eusébio"" e eu olhei para trás e senti-me como Pilatos, quando olhou para Jesus, e pensei: "é este o rei do nosso futebol? porque não se senta no camarote com o resto da nobreza? porque se mistura ele com a plebe?". Mal eu sabia que seria a primeira vez que assistia àquela que considero a maior virutde de Eusébio: a sua humildade. Vi-o de perto na homenagem aquando do seu aniversário, e depois aqui em Macau, no relvado da antiga Caixa Escolar, no Tap Seac. Uma coisa que reparei nessas duas ocasiões foi o facto de que quando foi substituído, saíu pela linha lateral, sempre com a cabeça baixa, apesar dos sonoros aplausos. Não queria encarar ninguém, não queria ser superior ao comum dos mortais. Não foi estrela de cinema, não tinha carros desportivos de luxo nem se fazia acompanhar de modelos de lingerie em festas do "jet-set". Era um homem de família, não perfilhava crianças resultantes de relacionamentos amorosos casuais, enfim, nunca pediu nada, e tinha todo o direito de pedir, que de certeza alguém lhe daria. Era um senhor, era o nosso rei. Sou mais um servo que o saúda, majestade. Até sempre.

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns pelo texto.