O jornalista Carlos Morais José regressou ao painel do programa de opinião “Contraponto” da TDM, transmitido no último Domingo. Um regresso que se saúda do director do Hoje Macau, que depois de uma pausa sabática durante a qual planeava fazer parte de uma lista concorrente às últimas eleições legislativas, ambição que viria a sair frustrada por motivos que são do conhecimento geral. Sem desprezo pelos restantes participantes do programa, CMJ dá um toque especial ao “Contraponto”, com a sua presença que se torna impossível de passar despercebida, a teatralidade, a forma como recorre à ironia e até algum humor negro, a maneira como exerce o direito ao contraditório, entrando por vezes em confronto verbal com os restantes opinadores, em suma, produz bons momentos de debate televisivo. Pode ser quem não aprecie o estilo, o jeito como expressa o seu desacordo com a opinião alheia, mas o programa chama-se “Contraponto”, e o mínimo que se pede é uma saudável troca de galhardetes. Se for para todos concordarem em tudo, mais vale desligar a TV e ir ver um bom filme de porrada, porque a “harmonia” é uma coisa maravilhosa, sem dúvida, mas tudo o que é demais enjoa.
Posto isto, no último “Contraponto” falou-se ainda das eleições do dia 15, e do significado dos resultados para o futuro do território no plano político. O momento alto foi quando CMJ defendeu a teoria de que a população de Macau “não está preparada para eleições”, que “seria um erro eleger o Chefe do Executivo através do sufrágio directo e universal”, e que “o povo de Macau não existe”, ou que pelo menos a maioria dos residentes da RAEM, de onde saem os eleitores que foram às urnas há duas semanas não têm um sentimento de pertença a Macau, não se consideram “ou mun yan”, ou “pessoas de Macau”, e que se identificam mais com as suas raízes, da China continental. Esta foi a leitura que o director do Hoje fez dos resultados eleitorais, que deram uma vitória clara aos sectores empresariais e do jogo, sobre os candidatos do campo da pró-democracia, ou anti-sistema. Leitura que é muito semelhante áquela feita no artigo assinado pelo próprio CMJ na edição de sexta-feira do seu jornal.
Não me tinha pronunciado sobre esse artigo, de que gostei bastante, e ainda bem, pois assim posso fazê-lo agora depois do aceso debate no “Contraponto”, onde Paulo Rêgo, Frederico Rato e o próprio moderador Gilberto Lopes iam pedindo a CMJ que se explicasse sobre essa ideia de que as gentes de Macau “não estão preparadas para o sufrágio directo e universal”. Não me resta senão concordar com CMJ, na forma e no feitio, e só tenho pena que tenha aguardado até estas eleições e ver para crer: em Macau não existe cultura democrática. Adorava que houvesse, e juro que acho o sufrágio universal o máximo, e adorava ver o Chefe do Executivo eleito pelo voto popular, portanto não me interpretem mal. O problema é que quando a população de Macau teve a oportunidade de demonstrar que estava preparada para dar mais um passo nesse sentido, estragou tudo, e deu mostras que isto da política e de eleições é demasiado sério para deixar nas mãos de quem não sabe da missa a metade. E esta análise da “oportunidade perdida” já eu tinha feito logo após sairem os resultados eleitorais.
O que acontece é que em Macau a forma como se encaram as eleições é muito diferente daquela com que nós, europeus e portugueses em particular, estamos habituados. A nossa geração, pelo menos, está habituada a votar para tudo e mais alguma coisa: legislativas, presidenciais, autárquicas, europeias, clubes de futebol, sindicatos, associações de estudantes, delegados de turma, tudo e mais alguma coisa. Em Macau há gente que só agora vota pela primeira ou segunda vez, e que passou a vida a trabalhar, comer e calar, sem nunca ser tida ou achada sobre o que quer que seja. Em muitos casos nem lhes é dada a oportunidade de abrir a boca para dizer o que pensa, discordar ou achar bem ou mal, e subitamente marcha a todo o vapor, de BIR na mão, em direcção a uma mesa de voto, para escolher os 14 deputados do hemiciclo, o orgão legislativo da RAEM, eleitos pela via directa. Aqui nem se aplica a expressão popular que nos fala de um tal sapateiro que ousou tocar rabecão. Aqui o sapateiro propõe-se a conduzir a London Symphony Orchestra.
Pode ser que hajam alminhas que consideram que a “teoria do caos” que alguns analistas agora apresentam se deve a algum ressabiamento, pelo facto das coisas não terem corrido de acordo com as suas previsões ou desejos, e porque a lista ou listas da sua predileção se “espalharam” nestas eleições. Tudo bem, eu próprio confesso ter ficado desiludido com o mau resultado da candidatura que apoiei, mas isto não invalida que considere a minha “derrota” o resultado da expressão popular livre e democrática. Qualquer simplório percebe que a maioria dos eleitores não foi às urnas motivado pela ideologia, ou para votar na lista que considera ter melhores ideias, ou que o programa do seu candidato lhe tenha parecido o melhor para si e para Macau. Alguns foram pôr a cruz no quadrado que lhes foi indicado por outrém, e em muitos casos no candidate de quem receberam gratuitidades. Aconteceu aquilo que por aqui a maioria se refere como “compra de votos”.
Num dos momentos mais quentes do “Contraponto”, Frederico Rato questionou CMJ como seria possível provar que alguns candidatos compraram votos, ou que os eleitores tinham efectivamente votado neles, ao que o jornalista respondeu “tiraram fotografias do boletim de voto com o telemóvel”, ao que Gilberto Lopes retorquiu “Como, se é ilegal tirar fotografias dos boletins?”. CMJ ainda tentou suportar a sua teoria com a cortina à volta da cabine de voto, etc., mas a realidade é que nem é necessário fotografias ou qualquer prova – apesar de haver quem fotografe o boletim, e foram apanhados 14 infractores nestas eleições. O que acontece é muito simples: os eleitores votam nos candidatos que lhes oferecem dinheiro ou lhes pagam jantares porque…sim. Esta é uma das coisas que observamos com facilidade, mas é difícil de entender. Para nós, e repito, que estamos habituados a isto das eleições, sabemos como funcionam, temos a noção do secretismo do voto, e a certeza de que não há forma de alguém saber em quem votámos, digamos o que dissermos. Se o elemento de uma lista nos abordar e nos oferecer 500 patacas pelo nosso voto, podemos aceitar, dizer que sim senhor, pode contar connosco, e depois mandá-lo à fava e votarmos onde nos apetecer. Estas pessoas mais inexperientes nestas andanças sentem-se compelidas a votar no candidato que demonstrou mais generosidade, e no caso dos eleitores com menos educação, convencem-nos que têm na cabine de voto uma câmara oculta apontada para o quadradinho onde ele deve supostamente votar. Agora acreditem se quiserem, e não me perguntem porque é assim. Perguntem antes a eles.
E a culpa de tudo isto não é apenas dos candidatos “generosos” ou dos eleitores desinformados. Quem tem a obrigação de garantir eleições “limpas” faz mal o seu trabalho, ou simplesmente assobia para o lado e finge que não vê ou que não sabe. A Comissão Eleitoral e o CCAC não se esforçam sequer para deixar claro que a corrupção eleitoral é um crime, e que se é difícil educar toda a população nesse sentido, deviam dar provas de competência e garantir que os prevaricadores seriam detidos e acusados, e que eles estariam atentos. Em vez de dúvidas e meias-certezas, interpretações diversas e silêncios oportunos, deviam apresentar uma definição esclarecedora do que é proibido durante o período de campanha, e no ideal seria tudo o que não fosse material autorizado e possa interferir no sentido de voto do eleitor – e isto inclui as “boleias” de autocarro até ao local do sufrágio. Não sei se isto é medo de enfrentar gente poderosa, com dinheiro e influência, e assim mexer num vespeiro e sair todo picado. Fica mais fácil apanhar um pobre diabo qualquer, um funcionário que engana o erário público em centenas de patacas, ou que se ausenta do serviço durante o horário de expediente para tomar o pequeno-almoço. O funcionário da DSAT recentemente detido por corrupção passiva cometeu um erro estratégico: recebeu “lai-si” fora do período de campanha eleitoral, a data oficialmente designada para esse efeito. Perante este cenário, temos corruptores, corrompidos e autoridades como o trio de cordas desta triste orquestra que são as eleições.
Mas quem somos nós para duvidar da legitimidade do acto eleitoral e questionar os resultados? Ganhou quem teve mais votos e é assim que funciona a democracia, certo? Claro, mas agora vamos ver quem é que o eleitorado colocou na AL para os próximos quatro anos: quatro deputados do campo “do contra”, se nesta definição incluirmos a Nova Esperança, três dos chamados tradicionais, e sete do sector do empresariado e dos casinos. Sete empresários a juntar aos 12 que foram eleitos pelo sufrágio indirecto, e mais dois ou três que o Chefe do Executivo ainda pode nomear, dos sete que irão compôr o ramalhete. Ou seja, de entre 33 deputados, arriscamo-nos a ter mais de 25 empresários, pessoas que estão ali no orgão legislativo por excelência, com o dever de fiscalizar a acção do Executivo, a tratar da própria vidinha. É fácil prever o que vai acontecer na hora de votar propostas de lei ou diplomas. O que lhes der jeito, votam sim, o que não lhes dá jeito ou não lhes dizer respeito directamente e por isso estão-se nas tintas, dizem não. Se o Executivo quiser contar com o seu voto para aprovar seja o que for, é só dar-lhes um “rebuçado” – uma concessãozita aqui, a realização de mais uma obra ali, mais um regulamento administrativo que lhes facilite os negócios, é fácil. E fica ainda mais fácil engraxar o Executivo; qualquer coisa que os democratas proponham, nem que seja para o bem de todos, é só votar “não”.
Olhando para estes resultados que reforçam a posição dos detentores da riqueza, Pequim só pode fazer uma leitura: os “patriotas” de Macau não querem sufrágios directos, democracia e reformas políticas; querem dinheiro. Não querem saber de debates ou de programas, querem saber do verdinho das notas, e basta acenar com algumas e eles vão connosco para a cama. Lindos meninos, estamos no bom caminho. E assim falou o povo pela via sacrossanta do voto: fica tudo como está, que assim está muito bem. Quando no seu artigo de sexta-feira CMJ deu um exemplo de um cenário possível caso fosse permitido a este eleitorado eleger o Chefe do Executivo: chega um qualquer “aventureiro” do continente, investe cem milhões na compra de votos, ganha e obtém um retorno incalculável. E porque não? Para nós, “kwai-lous” pobrezinhos que vivem do seu trabalho, ouvir falar em “cem milhões” é o suficiente para nos saltaram os olhos das órbitras. Tanto dinheiro! Nem por isso, para estes tipos não é nada, e mesmo quem não tem cem milhões na gaveta do escritório para investir nos próximos dez minutos, pede emprestado a meia dúzia de empresários, prometendo-lhes contrapartidas quando chegar ao poder. Se chegaram cá ontem ou na semana passada e não sabiam que é assim que funciona por estas bandas, estão desculpados. Se já estão aqui há muito tempo, já deviam saber. E ainda acreditam que é possível deixar o futuro de Macau nas mãos deste eleitorado? E no Pai Natal, também acreditam?
2 comentários:
Por esse raciocínio, não há nem nunca haverá mais democracia nem em Macau nem Hong Kong nem na China, pois a sociedade nunca estará preparada.
Caramba, se países tão diversos como a India, Botswana, Gana, Iraque, Afeganistão, Indonesia, Paquistão, Mongolia, Angola, Sri Lanka, Vietnam, Gabão, caramba, até o Burkina Faso conseguem conviver com o processo de sufrágio universal (uns com mais maturidade que outros..), porque raio é que por estas bandas ouvimos sempre o mesmo discurso da treta que os chineses não estão preparados para a democracia??
São menos que os outros? Mais estupidos ou ignorantes ou corruptos??
O erro que o Leocardo assume é que a democracia é como um interruptor que se liga e de um momento para o outro fica tudo a funcionar na perfeição.
Meu amigo, isto é um processo que leva muito tempo a ajustar-se, é um percurso longo e cheio de erros, percalços e contratempos pelo caminho. Mas uma vez iniciado (mas iniciado a sério, e não com estas palhaçadas de mini-eleições locais), será um processo de aprendizagem irreversível que tenderá a aperfeiçoar-se até um dia atingir a maturidade.
Quer um bom exemplo (e ainda por cima mete também chineses)??
Veja o exemplo de Taiwan.
As primeiras eleições presidenciais foram em 1996 com a vitória esmagadora do poderoso partido Kuomintang. Desde aí, os casos de corrupção eleitoral e envolvimento das seitas não pararam de ensombrar os processos eleitorais subsequentes, tendo atingido o auge da confusão em 2004 quando o candidato vencedor Chen Shui-bian chegou a ser baleado (!!) em plena campanha de rua.
Pois é, tanta confusão, tanta barafunda, tanta balburdia, tanta bagunça e olhe-se para Taiwan hoje. É uma democracia madura e consolidada, com um processo eleitoral transparente e com um eleitorado exigente e responsável. Ah, e o antigo presidente está hoje na cadeia a cumprir uma pena de 19 anos de prisão por corrupção.
E nós cá continuamos com esta lenga lenga da sociedade não estar preparada. Pois é, não está nem nunca estará!! Pudera, com tretas de eleições como esta, para quê perder tempo a reflectir em quem votar? Se no final acaba por não servir para nada nem conduzir a nenhum resultado prático, com um Chefe de Executivo escolhido a dedo por Pequim e uma Assembleia controlada por uma maioria escolhida a dedo pelo Governo, é obvio que mais vale colocar o voto em quem pagar mais.
Sem coragem (ou vontade) de dar o primeiro passo firme no sentido da democratização do sistema político, daqui a vinte anos, o Leocardo estará a usar os mesmos argumentos da falta de preparação para justificar o adiamento.
É como dizer a uma criança que não deve saltar para a água pois ainda não sabe nadar. E como tal, uma vez que não deve nunca saltar para a água, também mais vale nem começar a aprender a nadar. Não vale a pena, não é...?
Tem a certeza? Leu isto: http://jtm.com.mo/opiniao/e-disto-meu-povo-gosta/
Voltamos a este tema hoje...
Cumprimentos
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