domingo, 5 de janeiro de 2014

O passageiro da noite


Pode ser que já vos tenha acontecido, especialmente se forem homens e viverem sozinhos, como é o meu caso, ir dormir cedo, acordar a meio da noite com uma certa larica e não encontrar no frigorífico nada que se coma - ou que apeteça comer. Foi o que se passou comigo na sexta-feira passada, incidentalmente. Cansado de mais um dia na linha da frente a finger que percebo chinês, chego a casa pelas sete horas mas já feito num oito, como qualquer coisa que apanhei pelo caminho, publico dois rascunhos que deixei no fumeiro do blogue, e depois do Telejornal vou-me esticar um pouco na cama, para ficar mais "fresquinho" pela hora do lobo. Pelo menos era esse o plano. A calma do quarto e o remanso do travesseiro eram bons conselheiros, e apesar das pestanas ameaçarem abrir umas duas ou três vezes pelo meio, a sorna prolongou-se até de madrugada.

Acordo bem acordado já passavam bem das três da manhã, e enquanto espreitava as novidades da net e coçava aquelas partes do tronco que precisam de ser coçadas depois de umas horas de sono, pensava em voltar para a cama até, sei lá, às oito ou nove horas? Pelo menos assim aproveitava um Sábado em vez de acordar pelas duas da tarde e ter meia dúzia de mensagens no telemóvel de gente em pânico à minha procura. Mas como tinha dormido as sete horas da ordem, apetecia-me tudo menos dormir, e na verdade já me apetecia qualquer coisinha que se comesse. Abro o frigorífico, e tudo o que via eram refrigerantes, molhos, e manteiga, além das mais sugestivas panquecas, compotas e o "golden syrup" da Taikoo, que me piscavam o olho. Mas bah, que se lixe, não me apeteciam panquecas, e para mais estas já estavam um tanto ou quanto duras. Decidi sair e procurar algo mais consistente, e as pernas já pediam uma caminhada.

Não foi difícil decidir pela saída, pois tinha a roupa preparada para o rendez-vous de sexta-feira que o sono me tinha roubado, e como não ia a lugar nenhum em especial, poupei tempo na produção de imagem. Assim foi só enfiar-me nos trapos, calçar umas sapatilhas e passar uma concha de água pelo cabelo, não fosse ser confundido com o professor Einstein do Tarrafeiro. Mesmo assim considero que me preocupei demasiado com a estética, como vão perceber mais à frente. Sai de casa passavam vinte minutos das quatro, em busca do petisco ilusivo. O tempo estava fresco, tinha sido um dia mais ou menos quente, com uma temperatura máxima de 20 graus com uma mínima que quinze. O ar até se respirava bem, devido à ausência de trânsito, e tinham passado algumas horas desde a recolha do lixo. As ruas estavam praticamente desertas, claro, e sabia bem andar em Macau - para variar.

Agora a pior parte: Macau, cidade internacional de turismo e lazer e blá blá blá é uma cidade-fantasma entre as quatro e as cinco da madrugada. Praticamente nada aberto, e os únicos sítios onde se encontra qualquer coisa que se coma são os restaurantes chineses onde os patronos dos casinos vão cear, e isto não falando dos próprios casinos, claro. Já andei pela rua a estas horas proibitivas em cidades como Kuala Lumpur, Singapura, Cantão ou Hong Kong, e epá, isto que nós temos aqui é uma treta. Nestes lugares que referi há sempre uma tasca aberta onde se pode provar uma especialidade local qualquer, enquanto que por aqui o melhor que temos são algumas lojas de sopas de fitas residuais, ou aqueles negócios familiares de rés-do-chão que vendem "dumplings" e pães cozidos a vapor, e que aproveitam para inflacionar os preços das bebidas em mais duas ou três patacas, por estarem abertos àquela hora. O diabo que os carregue.

O meu itinerário em busca da bucha perdida levou-me a percorrer a Rua 5 de Outubro, ddepois à Av. Almeida Ribeiro, subindo pela Rua de Felicidade sempre a direito até à Rua da Alfândega, descendo depois a Calçada do Tronco Velho, passando pelo Largo do Senado, e finalmente pela Rua dos Mercadores no regresso a casa. Antes de me lamentar de não ter encontrado nada que se comesse, apesar de ter deparado com um ou dois sítios com as portas abertas, deixem-me falar das pessoas que encontrei pelo caminho. Quem anda na rua em Macau a altas horas da madrugada? Malucos, sobretudo. Sim, a "beautiful people" anda por aí nas discotecas e nos bares, e entre os muito poucos que terminam o seu turno nos hotéis, casinos e saunas, e os ainda menos que começam o seu dia de trabalho a essa hora, há as prostitutas, os "ladyboys", os que perderam o dinheiro todo nos casinos e vagueam pelas ruas, os que beberam mais que a conta e demoram a atinar com o caminho de casa, e os sem-abrigo, os que dormem na rua, e que durante o dia se escondem debaixo dos panos, entre os latões do lixo, ignorados pela cidade que anda em roda-viva.

Na Rua dos Mercadores ainda tentei comprar qualquer coisa que me aconchegasse o estômago no 7-11, mas de entre tanta escolha, nada me enchia as medidas. Voltei para casa, já com as tais panquecas que anteriormente desprezei no pensamento, e com um pouco mais de vontade de completar o sono - afinal tudo se devia às pernas, que estavam a pedir uma caminhada que lhes dessem outra vez vontade de se esticarem na cama. Já perto de casa, ali ao lado na Rua da Tercena, dei com um casal de filipinas lésbicas que demonstravam abertamente o seu afecto uma pela outra à porta de um prédio. Passei por elas e mandei-lhes um piropo: "arranjem um quarto!". Não me orgulho de ter molestado as senhoras, mas considero que foi a minha pequena contribuição para a louca noite macaense, que não se recomenda a menores e pessoas sensíveis. Depois das panquecas fui então ajustar contas com o travasseiro, e lá pelo meio-dia estávamos quites. Macau, Macau, o que é que te estão a fazer, meu amor.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom ! :)
Ja tive caminhadas do genero!