sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O lado errado da noite


Para quem não leu, aqui fica o artigo da edição de ontem do Hoje Macau.

Nunca é fácil abordar o tema da prostituição, um fenómeno que se verifica em todas as civilizações desde os tempos mais remotos, presente em todas as culturas nos quatro cantos do mundo, independente das condicionantes políticas ou religiosas, ou da forma como se manifesta. É a “mais velha profissão do mundo”, usando um lugar comum. Em Macau, cidade cuja economia depende do jogo, é um negócio paralelo a este, perfeitamente integrado e aceite pela sociedade, mas ainda tratado como tabu. Neste pequeno cantinho do sul da China, a prostituição é vista como um mal – ou bem, depende da perspectiva – inevitável, tão normal que custa a acreditar que ainda precise de ser dissimulado, e que os seus agentes sejam vetados ao ostracismo.
Em Macau a prostituição não é uma actividade legalmente reconhecida e regulamentada, e as profissionais do sexo actualmente referenciadas são oficialmente “dançarinas”, “bailarinas” ou “massagistas”. Nos últimos anos o território tem visto o seu nome arrastado na lama pelas listas dos relatórios internacionais como local onde se pratica “tráfico humano”. Tanto eu como o leitor sabemos bem que Macau não é ponto de paragem de gales repletas de escravas sexuais acorrentadas, subtraídas à força de suas famílias e obrigadas a prostituir-se, e tudo o que essa monstruosa definição de “tráfico humano” implica. É natural que se cometam alguns abusos derivados da natureza marginal desta actividade, que continua a ser controlada por associações criminosas, que não são conhecidas por serem dotadas de escrúpulos. Mas mesmo assim é injusto afirmar que a situação é preocupante, quanto mais grave, carecendo de intervenção urgente.
Em termos de classificação, Macau encontra-se actualmente no “nível 2“ atribuído pelo Protocolo de Protecção às Vítimas de Violência e Tráfico Humano (TVPA, na sua sigla inglesa), datado de 2000, que significa que o território “ainda tem muito trabalho a fazer” no combate ao tráfico de seres humanos, especialmente mulheres e crianças destinadas à exploração sexual. Quero acreditar que isto se trata de uma observação externa, e baseada em parâmetros que não traduzem a realidade local. O Governo da RAEM “compromete-se a alterar a situação” e elevar o território a padrões internacionais mais aceitáveis, se bem que este “combate” não seja acompanhado por uma acção visível no terreno. Como já disse, é uma realidade muito específica, acima de qualquer convenção internacional.
Basicamente em Macau é mais fácil encontrar uma prostituta que um táxi. Costumo dizer isto em tom de brincadeira, mas não fica longe da verdade, especialmente num sábado à noite, quando é quase impossível apanhar um táxi. Praticamente toda a gente sabe onde encontrar mulheres que se disponham a favores sexuais remunerados, e existem opções para todos os gostos e todas as carteiras. Neste particular, o território tem uma longa história, se bem que algo obscura, mas que conheceu o seu esplendor nos anos 80 do século passado com o aparecimento das famosas “saunas”, que contavam com mão-de-obra originária sobretudo da Tailândia. Foi um período em que a expressão “ir à sauna” ganhou um sentido diferente daquele atribuído pela sua original designação finlandesa. Mais banho, menos banho, o nome “sauna” era apenas um pró-forma destinado a obter o licenciamento da actividade, mas era óbvio que se tratavam de bordéis, pura e simplesmente. A chegada destas “saunas” foi uma autêntica revolução nos costumes de uma cidade que se regia por princípios ainda algo conservadores, e onde requisitar os serviços de uma prostituta era quase considerado uma perversão.
O negócio da prostituição é lucrativo, origina receitas talvez apenas ultrapassadas pelo próprio jogo, a que se encontra intimamente ligada, e pelo imobiliário. Depois das saunas surgiram outras designações “politicamente correctas”, como clubes nocturnos, salões de dança ou casas de massagem que eram no fundo prostíbulos assumidos. Alguns estão mesmo localizados em hotéis de luxo, onde é possível encontrar um leque de opções que variam da simples massagem e banho seguidos de gratificação manual, ao “serviço completo”. Alguns hotéis/casinos mais conhecidos oferecem uma modalidade em que o cliente pode adquirir os serviços de uma “modelo” da China continental. “Modelo” no sentido que se trata de uma mulher elegante e alta, e não a assalariada de uma marca de roupa conhecida. No velho Hotel Lisboa, “ex-líbris” de Macau por excelência, é normal encontrar jovens bonitas, elegantes e bem vestidas a passearem-se pela zona comercial, e não estão lá a ver as montras. São tantas, e a qualquer hora do dia, que quem ali se desloca com outro propósito que não seja requisitar os seus favores, quase precisa de lhes pedir licença para passar.
Existe ainda um segmento de mercado em regime de “freelancer”. Antigamente existiam as tradicionais “iat lau iat fong” (一樓一鳳), literalmente “uma casa, uma Fénix”, onde uma única mulher recebia clientes no seu apartamento. Estas “casas” não abundavam, e os clientes conhecedores ocorriam às poucas existentes, o que já é suficiente para que se deduza a promiscuidade inerente a este negócio. Hoje são várias as casas particulares, pensões e hotéis de segunda categoria onde se podem realizar encontros amorosos por um preço acessível a qualquer bolso. Há pensões que oferecem quartos pela duração de uma ou duas horas, e não será para que se realizem reuniões de negócios. A maioria destas “freelancer” são oriundas da China continental, mulheres muitas vezes casadas e com filhos, que chegam ao território com o intuito de equilibrar as finanças domésticas durante o tempo que lhes é permitido ficar, e mesmo depois disso, conforme as necessidades. Como estas não se encontram inscritas no “sindicato” local, exercem a actividade por sua conta e risco, e beneficiam do facto de Macau ser ainda uma cidade segura. Terão mais problemas com as autoridades do que com a clientela propriamente dita.
Apesar de constituírem a esmagadora maioria, nem só do continente chegam as prostitutas que exercem o seu ofício em Macau. A variedade é ditada tanto pela moda como pela oportunidade, e afluíram ao território nos últimos vinte anos mulheres de origens tão dispersas como a Rússia, o Brasil, a Colômbia ou a Mongólia. Algumas imigrantes do sudeste asiático, a maioria delas com profissões “normais” exercidas em regime diurno, obtêm remuneração suplementar fora do horário de trabalho. Um facto facilmente verificável em alguns bares e discotecas do território, uma forma de prostituição “indirecta”, em regime de “part-time”. Nos últimos anos é comum encontrar travestis e transexuais oriundos das Filipinas, um mercado que aparentemente tem agora mais procura, a julgar pela cada vez maior oferta – e menos discreta, também. E não ficamos por aqui, em termos de diversidade. Algumas mulheres de origem africana vêm ao território com o propósito de renovar o visto de permanência no continente, onde trabalham. Este processo não é sempre célere, e pode demorar entre cinco e trinta dias, dependendo da sorte. Algumas optam por usar esse tempo livre para fins lucrativos, e no caso da estadia se prolongar mais que o previsto, chega a ser mesmo entendido como uma estratégia de “sobrevivência”. Até neste particular do sexo pago, pode-se dizer que “a ocasião faz o ladrão”, salvo seja.
É hipocrisia considerar o fenómeno da prostituição em Macau como uma “anormalidade”, ou que se considere uma forma “marginal” de vida como acontece noutras paragens. Numa cidade onde o dinheiro é coisa que não falta, pode ser entendida como mais uma forma de se “deitar a mão” a algum dele. A mentalidade vigente vai muito além dos encontros de componente estritamente romântica, mesmo que esta tenha também o seu peso. Recorrendo a uma regra de ouro da economia: não há almoços grátis. É ingenuidade pensar que um dos tais turistas da China continental que aqui chega sozinho ou com os amigos para injectar o capital de que a nossa economia depende procure apenas bares de karaoke e outras formas de entretenimento “limpas”, ou que se limite a “pagar uns copos” se ganhar alguns milhares de patacas no casino. Nessa eventualidade não faltará quem se disponha a partilhar da sua boa fortuna oferecendo em troca alguns momentos de companhia íntima.
Algumas prostitutas e outros trabalhadores da indústria da diversão com que privei dizem-me que estes turistas procuram a prostituição como fazendo parte da experiência de Macau no seu todo, e nem sempre o fazem por luxúria ou por desejo. Muitas vezes é apenas parte do “set lunch”, se me permitem a analogia. É errado pensar que se trata ainda de um último recurso para satisfazer uma necessidade fisiológica, um mundo habitado pelos estratos mais baixos e menos educados da sociedade, ou um risco para a saúde pública. As aparências contam muito pouco. E já nem falo dos cidadãos locais que convivem com esta realidade, e que dela se servem amiúde. Muitos deles elementos respeitáveis das diversas comunidades que compõem a sociedade local. É uma parte indissociável da natureza de Macau, e só é pena que não adquira um estatuto que leve a que se exerça dentro da legalidade, de modo a garantir mais segurança a todos os seus intervenientes. Pode ser que um dia lá cheguemos, quando formos crescidos.

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