É impossível não se gostar de batatas, esse tubérculo originário da América do Sul e trazido para a Europa no século XVI, em boa hora. Há quem não goste de batatas cozidas, assadas ou em puré, mas quase ninguém resiste a esse saboroso polisaturado que são as batatas fritas, seja em que figura geométrica se apresente: palitos, cubos, rodelas ou palha. Mais nenhum vegetal reage tão bem ao contacto com o fogo. Aliás esta é uma das qualidades da batata; um legume monocromático que se assemelha a uma pedra, sem imaginação nenhuma, facilmente perecível, mas que pode ser transformado numa iguaria digna de um rei se for bem cozinhado.
Gosto de toda a variedade de batatas confecionadas de todas as formas, e o sucesso depende apenas do “casting”. Uma batata fora de contexto pode arruinar uma refeição. Assim as batatas fritas ligam com o bitoque e com a “fast-food”, as batatas cozidas vão com o peixe cozido, as sardinhas e carapaus assados, os chocos com tinta, as caldeiradas e o tradicional Cozido à Portuguesa, as batatinhas assadas são cúmplices dos pratos de borrego, cabrito e vitela, o puré acompanha os bifes de perú ou as costeletas de porco, e as patuscas batatas “a murro”, que têm a particularidade de se poder comer a casca, casam quase unicamente com o Bacalhau à Lagareiro. Rejeitar as batatas como acompanhamento é como assinar uma atestado de burrice. Quem não gosta de batatas, não sabe comer.
Existem outros usos para a batata que vão além do simples “side-dish”. A batata torna-se o actor principal num empadão de carne ou de peixe, nos “soufflés” e croquetes mais exigentes, no pastel de bacalhau ou no italiano “gnocchi”, que é uma massa de fécula de batata que se pode comer frita ou com molho de tomate. A batata aparece dissimulada no Bacalhau à Brás, ou ainda como suporte de um prato que é parcialmente baptizado com o seu nome: as batatas recheadas. Uma salada russa sem batatas não faz sentido, e o que seria da maioria das sopas sem a consistência que lhes é conferida pela batata? E por falar em russas, sabia que o vodka pode também ser destilado através da fermentação da batata?
A batata é o ingrediente indispensável dos pratos mais nobres nos quatro cantos do planeta. No Bauernfrühstück alemão, no Aloo indiano, no Munini-imo japonês, no Trinxat catalão, no Pitepalt sueco, no Xogoi tibetano, no Knish judaico, ou nos simples “hash-browns” do McDonald’s, bem como em muitos outros. Além dos pratos salgados, serve para fazer bolos e pudins, e as folhas da sua planta servem para fazer chá. A batata está espalhada pelos quatro cantos do mundo, não sofre de condicionantes culturais ou religiosas, e o mais importante, enche a barriguinha. É rica em potássio, vitamina C e ácido fólico. É difícil imaginar um mundo sem batatas.
A palavra “batata” nem sempre se refere ao vegetal propriamente dito, e tem na maior parte dos casos uma conotação negativa. Um nariz grande e disforme é um “nariz de batata”. Diz-se de um indivíduo lento de raciocínio, tímido ou pacóvio que é um pouco “batata”. Mesmo alguém que por outra razão qualquer tenha a alcunha de “batata”, passa por atrasadinho mental, e sofre de problemas afectivos – nenhuma miúda quer ser conhecida como “a namorada do Batata”. O palhaço mais famoso em Portugal é o Batatinha, que mesmo assim beneficia de um carinhoso diminutivo. Um Batatinha é querido, enquanto um “batata” é uma besta. A palavra “batatada” é normalmente sinónimo de confusão, luta, violência (ex: “andar à batatada”), quando podia muito bem designar um delicioso prato de batatas salteadas, ou um doce de batata. Existe uma expressão popular curiosa: “Ai querias batatinhas?”, cujo significado não entendo muito bem. Penso que é uma forma irónica de sugerir que o indivíduo a que esta frase é dirigida está metido num sarilho; “batatinhas” será algo que se obtém sem muito esforço. “Ai querias batatinhas” pode muito bem ser traduzido para “Pensavas que era fácil e no fim foste f...do”. Penso que seja isso, mas posso estar enganado.
Existem cerca de 4000 variedades de batata, mas pouco mais de 100 são comercializadas à escala mundial. A qualidade da batata varia de acordo com a sua cor, tamanho, textura, dureza, consistência ou cerosidade da sua casca. Cada uma tem as suas características especiais, e existem variedades destinadas a um fim muito próprio. Nem todas servem para fritar, cozer ou assar. Em Macau temos pouca sorte com a qualidade de batatas disponíveis. As batatas locais são impróprias para fritar, e as tentativas de produzir pastéis de bacalhau caseiros requerem muita sabedoria, ou terminam abortadas no caixote do lixo. O antigo supermercado Gourmet, na ilha da Taipa, importava batatas de Portugal, e apesar do preço quase proibitivo, servia para matar saudades de quando em vez. E que saudades tenho eu das batatas lusitanas.
Aqui em Macau é o que se sabe; os locais preferem arroz. Existia na Rua de S. Paulo uma loja cujo nome não me recordo que servia batatas fritas e assadas com molhos variados, mas que entretanto faliu. O que estavam eles à espera? Fossem uma loja de "min" e "van-tans" ou essas porras todas e ainda lá estavam sempre com a casa cheia. A única razão que leva o McDonald’s a manter-se irredutível servindo batatas fritas em vez de arroz deriva da sua própria natureza. As "french fries" do McDonald’s, congeladas sabe-se lá onde, são uma bosta. Até se comem mais ou menos bem, mas ao fim de dez minutos transformam-se em borracha. Aqui os clientes são como focas amestradas: sabem que se forem ao McDonald’s, é com batatas que levam, gostem ou não. Adorava que existisse mesmo uma vida além da morte, e a única comida disponível para toda a eternidade fossem batatas. Aposto que Jesus gostaria de batatas, fossem elas conhecidas no seu tempo. Maomé até podia dizer mal do toucinho, mas se calhar punha-o de lado e comia só as batatas. Mesmo o Buda, como bom indiano que era, não dispensaria o tradicional Aloo.
Mas na China em geral e em Macau em particular é mesmo assim: as batatas são relegadas para segundo plano, e são vistas como uma preferência dos ocidentais. Os portugueses, especialmente, são conhecidos como sendo grandes apreciadores de batata. Existe uma expressão que os chineses usam quando se aborrecem connosco: “Vai plantar batatas”, ou numa outra variante, “Vai para Portugal plantar batatas”, que é uma forma mais diplomática de nos mandar à merda. Portugal é apenas o 10º consumidor mundial de batatas “per capita”, numa lista em que os primeiros sete lugares são ocupados por ex-repúblicas soviéticas, lideradas pela Bielorrússia – desconfio que aí o prato nacional será filetes de batata com molho de batata e acompanhado com batatas fritas e salada de batata. Os portugueses são só superados por esta malta eslávica, pela Polónia e pelo Ruanda. Mas se em Portugal se comem muitas batatas, a China lidera no que toca à produção mundial. É caso para dizer que Deus dá batatas a quem não tem dentes para comê-las. Sendo um tubérculo que prolifera facilmente em qualquer solo, basta que o clima não seja demasiado rigoroso, do tipo siberiano. Assim depois da China seguem-se a Índia, a Rússia, a Ucrânia e os Estados Unidos como maiores produtores de batatas do mundo. Quanto maior em área for um país, mais batatas produz. É a tal lógica da batata.
Ainda havia muito mais para dizer sobre a batata. Não referi ainda a deliciosa batata doce, que apesar de ser mais difícil de descascar e cortar, é melhor para fritar que a maioria das batatas disponíveis nos mercados de Macau. Pelo menos mantem-se erecta e estaladiça, e não flácida a pingar óleo. A porcaria das batatas que se vendem por aqui não valem um cu, e desconfio que só servirão algum propósito à medicina tradicional chinesa para serem convertidas nalgum tipo de emplastro. Seja como for, demos graças pela batata, uma dádiva da natureza. Não é à toa que encabeça sempre a lista de soluções para combater a fome no mundo. Onde há batatas, não há fome. Por isto, aproveitamos o ano que hoje começa para amar as batatas. E como se demonstra o amor? Comendo, pois claro!
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