Para quem ainda não leu, aqui fica o artigo da edição de ontem do Hoje Macau. Bom fim-de-semana!
I
São os pobres, os idosos, os toxicodependentes e os deficientes, os elos mais fracos que sempre quebram nesta RAEM dos muitos milhares de milhões de patacas. A dificuldade no acesso ao emprego e à habitação juntamente com a subsídio-dependência levam-nos a uma espiral de exclusão de onde é quase impossível sair, num território onde cada um defende o seu pedacinho de céu da forma mais agressiva que sabe, roçando tantas vezes o egoísmo e o desprezo pelos seus iguais menos afortunados. Há alguns anos em Hong Kong realizou-se uma conferência internacional onde um orador norte-americano sugeriu que uma forma de combater a pobreza e a exclusão e incluír os mais pobres na sociedade seria legislar no sentido de tornar obrigatório que estes não vivessem longe do seu local de trabalho, permitindo que se pudessem deslocar a pé para diariamente ganhar o seu pão. A ideia teve imediatamente uma reacção negativa forte dos participantes honconguenses, pois ter os pobres a morar ao lado “desvalorizaria a sua propriedade”. Na RAEHK as pessoas com menos posses e os trabalhadores migrantes que auferem salários mais baixos optam muitas vezes por alugar uma cama semelhante a uma gaiola, conhecidas por “camas-caixão”, onde vêem a sua privacidade confinada a um espaço mais pequeno que uma mera banheira, e mesmo assim pagam pelo menos 3000 dólares de Hong Kong mensais por este alojamento pouco digno. É bem conhecido o caso dos moradores de um conhecido complexo habitacional em Hac-Sá, Coloane, que se manifestaram há alguns anos contra a abertura de um lar de idosos no espaço comercial desse complexo, e apesar de terem alegado razões diversas, a motivação principal é óbvia: não seria bom para o seu investimento ter ali um asilo, onde paira a todo o momento o espectro da morte. É uma mentalidade que por aqui vigora; quem não tem os milhões que fazem as delícias de especuladores e restantes tubarões do imobiliário é atirado borda fora, e arrisca-se a ir morar para uma ilha qualquer longe daqui, onde não atrapalhe a economia. Não é muito diferente do que se fazia com os leprosos do passado, só que agora a doença é outra, de natureza social. Com a diferença que mesmo para a lepra existe hoje uma cura…
II
A grande procura que se tem verificado nas farmácias pelas fórmulas de leite em pó para bebés é um problema que preocupa os residentes de Macau. É bizarro que isto aconteça num território rico e onde a falta de géneros de qualquer espécie é coisa de um passado distante, dos tempos da II Guerra Mundial, onde chegou a existir fome no enclave então administrado por Portugal, e que apesar de gozar da neutralidade conseguida pelo Estado Novo, estava situado numa região ocupada pelo invasor japonês, e os escassos alimentos estavam longe de satisfazer as necessidades mais básicas. Tempos difíceis, que tivemos a sorte de não testemunhar. Mas esta actual corrida ao leite em pó não se deve a nenhuma guerra, crise ou sequer a um aumento súbito da natalidade, o que seria uma justificação aceitável. Quem procura as fórmulas são turistas da China, que não confiam na qualidade do produto no continente. Além dos pais legitimamente preocupados com a saúde dos seus filhos lactentes, não falta ainda quem aproveite para obter algum lucro, levando caixas de leite em pó para o interior da China com o propósito de o revender. O mesmo acontece com outros bens alimentares, muito requisitados por turistas do continente receosos das inúmeras falsificações e adulterações que infelizmente ainda existem na China em grande quantidade. Estas situações que envolvem bens de primeira necessidade e por isso interferem com a qualidade de vida da população merecem uma atenção redobrada por parte do Governo. Se a habitação, um direito que devia estar acessível a todos os residentes de Macau já se encontra na mão de especuladores, qualquer dia acontece o mesmo com os produtos alimentares. Isso sim, seria o fim da prosperidade e da “harmonia” que tanto se apregoa.
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