segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

As gentes malaias


No ano seguinte a ter chegado ao território, li num diário local que em Macau exisitiam pessoas de mais de cem nacionalidades diferentes, 15 delas representadas apenas por um indivíduo. Era interessante actualizar esta estatística, mas tenho a certeza que o resultado não seria muito diferente. Apesar da sua pequenez , Macau ainda é procurado por gentes dos quatro cantos do mundo, pelos mais diversos motivos, com as mais variadas ambições. É uma mini-Babilónia. Nestes vinte anos tive a oportunidade de privar com pessoas de nacionalidades que nunca pensei vir a ter um dia contacto, e de todos os continentes.

Estando situados no sul da China, é apenas normal que as comunidades mais numerosas sejam originárias do sudeste asiático. Além do cada vez maior número de residentes originários da China continental, existem duas comunidades com características muito especiais com que temos um contacto mais frequente: a comunidade filipina, e a comunidade indonésia. Estas duas comunidades que partilham a etnia malaia “sobreviveram” à transição, e no caso dos indonésios deu-se uma emigração maior nos últimos dez anos. Ambos vêm à procura de uma vida melhor, e Macau precisa deles, quer se goste ou não.

Começemos pela comunidade filipina. Existem em Macau cerca de 10 mil filipinos, a esmagadora maioria deles cidadãos não-residentes. No tempo da administração portuguesa eram menos de 5 mil, na maioria empregadas domésticas ao serviço da comunidade portuguesa e mão-de-obra de cafés, bares e restaurantes de matriz ocidental. O eventual êxodo da comunidade portuguesa no pós-99 deixava adivinhar igualmente a desagregação da comunidade filipina, pois o facto de comunicarem apenas na língua inglesa além da sua língua materna podia não ser suficiente para corresponder às exigências da recém-criada RAEM. Só que a comunidade soube adaptar-se a esta nova realidade, e provou que não precisava dos “sirs” e das “moms” portuguesas para nada. Hoje os filipinos não são apenas mais em número, como ainda se conseguiram organizar. Ao contrário do que acontecia antes da transição, existem hoje lojas, restaurantes, salões de beleza e outro comércio cujos proprietários são filipinos, e uma gama de produtos e serviços que as duas horas de distância de Manila fazem chegar a Macau em quantidade e qualidade, e a preços amigos.

Os filipinos tiveram sempre uma relação próxima com a comunidade portuguesa e macaense, devido à facilidade em comunicar mas também graças a diversas semelhanças culturais, nomeadamente a religião. As Filipinas são o único país de maioria cristã na Ásia, cortesia dos ex-coloniadores espanhóis. Apesar da componente cultural asiática que também os caracteriza, as diferenças não “chocam” tanto com a nossa cultura, como acontece com outros povos desta região. O facto da maioria dos filipinos serem trabalhadores não-residentes e dependerem de patrocínio nem sempre muito fácil de obter, levam a que sejam vistos pelos locais como um “estrato inferior” da sociedade, e são muitas vezes ostracizados. Por essa razão, e por nem sempre poderem fazer valer os seus parcos direitos, a comunidade dotou-se de alguns mecanismos de sobrevivência que os leva a tomar atitudes pouco ortodoxas, e comportamentos por vezes marginais. Mesmo assim existe já uma fatia da comunidade que usufrui do estatuto de residente permanente, alguns mesmo já nascidos no território, e que convivem sem problemas de maior com os restantes residentes. Macau é há várias décadas um dos destinos de eleição dos emigrantes filipinos, e esta só podia ser um consequência dessa vivência já com alguma história.

A comunidade indonésia, apesar de ter estado sempre presente em Macau, só há alguns anos começou a fazer notar a sua presença. Não sei ao certo quantos indonésios residem no território, mas ao contrário dos filipinos, os seus elementos do sexo masculino terão uma expressão residual; contam-se pelos dedos de uma mão os homens indonésios com que tive contacto. As indonésias são também na sua maioria empregadas domésticas, mas a vantagem de falarem o cantonense (algumas também sabem ler e escrever) leva a que uma parte significativa consiga emprego nos casinos e outros locais de entretenimento. A motivação das imigrantes indonésias, apesar do elemento novidade, não difere dos filipinos: ganhar dinheiro para ajudar a família no país de origem.

As indonésias, apesar da confusão normal derivada da mesma origem étnica, distinguem-se da comunidade filipina, muito por culpa da religião que professam: a islâmica. É comum encontrar indonésias que usam o véu, mesmo na rua, e a esmagadora maioria mantém-se irredutível quanto ao consumo de carne de porco, que é proibido pelo Islão. Só que ao contrário do que acontece na Indonésia, o maior país muçulmano do mundo, a atitude destas expatriadas perante a religião encontra em Macau uma atitude muito mais relaxada. Não é raro encontrar indonésias que não cumprem alguns dos preceitos impostos pela sua doutrina, nomeadamente no que toca ao vestuário ou a atitude perante as relações afectivas, nomeadamente o sexo pré ou extra-marital. Pode ser que Alá fique zangado, mas está lá longe e não vê.

Isto leva-me a falar de um aspecto que contribui para que estas duas comunidades gozem uma certa “má fama” entre os locais, especialmente dos mais conservadores. Existe um preconceito mais ou menos justificado de que as mulheres filipinas e indonésias se prostituem, ou que são “fáceis” de levar para a cama. Este é um tema que infelizmente ainda é tabu, e apesar de ser uma realidade facilmente constatável, não se faz uma abordagem mais profunda do fenómeno, nem se considera qualquer forma de apoio ou intervenção dos agentes da acção social. É uma especificidade com contornos muito próprios, um comportamento mais ou menos tolerado à luz da realidade local. Faz parte da “paisagem” de Macau, apesar do grosso da prostituição “oficial” continuar a ser de mulheres de etnia chinesa oriundas do continente. Nenhuma nacionalidade é por natureza invulnerável a estas fraquezas, ou defeitos, se o quiserem chamar assim. O que acontece é que muitas vezes a necessidade sobrepõe-se aos princípios da moral.

Já não são novidade nenhuma as histórias das escapadelas sexuais de alguns patrões com a empregada filipina ou indonésia, ou os abusos cometidos (e consentidos) por indivíduos em posição de poder, e dos quais as vítimas dependem em termos de patrocínio e de sustento. Resumindo, a pouca vergonha anda muitas vezes de mão dada com a censura de atitudes e os julgamentos instantâneos de valor. A maioria dos residentes locais, especialmente os de etnia chinesa, olham de cima para estas comunidades, e falam sem nenhum pudor em “falta de dignidade”. Os chineses têm um preconceito antigo e injustificado com as filipinas e indonésias, muito por causa da cor da sua pele; para eles a pele escura é sinónimo de “sujidade”, de falta de higiene. Permitam-me uma opinião pessoal derivada da minha experiência: as mulheres filipinas e indonésias não ficam nada a dever à mulher chinesa em termos de higiene. Antes pelo contrário.

Mas as evidências falam mais alto. Basta frequentar alguns locais de diversão nocturna para testemunhar a forma pouco discreta com que as mulheres destas comunidades se “oferecem” a uma aventura passageira em troca de remuneração. Os locais frequentados por estrangeiros e ocidentais são os mais apetecíveis. Algumas destas mulheres têm empregos fixos que cumprem com o profissionalismo exigido. Durante a semana limpam a casa dos patrões, cuidam de crianças e de idosos, e nos fim-de-semana “transformam-se”, produzem-se, e procuram um rendimento suplementar ao mesmo tempo que aproveitam para satisfazer necessidades afectivas. Algumas fazem-no sem esperar qualquer tipo de compensação pecuniária, no caso de prevalecer a componente romântica, ou apenas o prazer de uma companhia.

Não é justo que se julguem estas pessoas ou que se condenem estes comportamentos sem reflectir sobre a sua causa. Algumas meninas e senhoras locais falam de barriga cheia e apressam-se a considerar esta atitude como “suja” e leviana. Ao contrário das muitas vestais e falsas púdicas que nasceram e cresceram no território, que têm aqui a família e os amigos e desconhecem por completo o conceito de “solidão”, estas são pessoas que chegam aqui sem conhecer ninguém, e a quem a natureza quase escrava da sua profissão leva a uma exigência menor na escolha das relações pessoais. Para quem já sentiu o peso da solidão, sabe que esta não é boa conselheira na escolha das companhias. É normal que se cometam erros, e que se aprenda da pior forma. Quem pode contar com o apoio incondicional de familiares e amigos não sabe o que isso é, mas estranhamente acha-se na posição de julgar os outros de forma implacável e redutora.

As comunidades filipina e indonésia são, apesar dos seus defeitos, parte inalienável da actual RAEM. São eles quem faz o trabalho que os “exigentes” residentes se recusam a fazer, e nenhum é demasiado sujo, pesado ou complicado. Estão aqui a fazer pela vida, mas quem não faz pela vida, independentemente da forma mais ou menos digna como o faz? Pode-se dizer com toda a segurança que se por algum acaso os milhares de filipinos e indonésios deixassem o território de um dia para o outro, seria o fim de Macau como o conhecemos. Seria o caos, a anarquia, a paralisia total das funções vitais do sistema. Respeitemos estas comunidades com que podemos aprender tanta coisa. Têm uma cultura riquíssima e interessante, uma visão larga do mundo, e podem contribuir para “abrir os olhos” a tanta gente com vistas curtas. Vamos recebê-los sempre de braços abertos, e quantos mais, melhor. Maligayang pagdating e Selamat datang. Quem é como quem diz: sejam bem vindos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não é segredo nenhum: os portugueses em Macau tratavam (e ainda tratam) as empregadas como tratavam os pretos em África! Vergonhoso.