Não me interessa que me chamem de arrogante ou pseudo-intelectual, ou que questionem a minha “portugalidade”, mas há um aspecto da nossa cultura, nomeadamente da musical, que não consigo entender, por muito que me esforce: os ranchos folclóricos. Sim, estou a falar daquelas pessoas que em nome da “tradição” ou lá o que é formam um grupo, vestem trajes bizarros e dançam ao som de gritaria acompanhada por uma espécie de música que parece sempre igual. Se calhar é sempre diferente, não sei, quando me aparece pela frente um rancho folclórico a música é aquilo que menos interessa.
Durante as festas de S. Pedro, no Montijo, os meus familiares mais velhos não dispensavam o “espectáculo”dos ranchos, que se exibiam normalmente num palco improvisado num largo ou praça da cidade, sempre de forma gratuita (claro, era o que faltava!). Nunca gostei e não me inibia de demonstrar o meu desagrado, e os meus parentes ralhavam-me, exigindo pelo menos “respeito pelas nossas tradições”. Peço desculpa, mas esta é uma daquelas “tradições” que me envergonham. Não tenho coragem para assumir que aquilo é um aspecto da cultura do meu povo, e pouco me importa que os estrangeiros tenham tradições semelhantes ou ainda mais aberrantes. Cada um com a sua cruz para carregar, penso eu.
Os ranchos folclórios variam o seu reportório e indumentária conforme a região a que pertencem, e a variedade existente leva-me a pensar que não somos assim um país tão pequeno ou um povo tão homogéneo. O que os ranchos têm normalmente em comum é a origem e designação. São todos o “Grupo de cantares” de um sítio qualquer, muitas vezes uma “Casa do Povo” de um lugarejo que ninguém conhece. Por acaso existe algum “Rancho Folclórico de Lisboa”, pura e simplesmente? É muito mais fácil encontrar algo do género “Rancho folclórico da Casa do Povo da Barra Cheia de Cima”, ou “Grupo de danças e cantares da Misericórdia Aljezurense”. O próprio nome “rancho” faz lembrar estábulos, animais de quinta, merdume e outra porcaria. Quem no seu perfeito juízo se orgulha de pertencer a um “rancho”? Por incrível que pareça, muitos destes grupos fartam-se de viajar pelo país fora e até no estrangeiro, e há pais que consideram esta uma actividade nobre para preencher os tempos livres dos seus filhos. Há gente educada e com mais que idade para ter juízo que pertence a um rancho, e muitos chamam a isto “uma paixão".
Quando era ainda um fedelho imberbe já dotado da rebeldia provocada pelas dores de crescimento, pensava que os ranchos folclóricos teriam os dias contados. Passados quase 30 anos, estão bem e recomendam-se, e não consigo encaixar a lógica desta resistência. Olhamos para um rancho e vemos um monte de gente descalça, vestida com trajes que já ninguém usa, mulheres com lenços na cabeça, homens de barrete e calças de pescador, bigodes fartos e buços evidentes em ambos os sexos. É uma caricatura de um país que já não existe e que não deixa saudades. O interesse do público por este tipo de espectáculo só pode ser resultado de algum recalcamento antigo, ou quem sabe de uma predisposição genética, uma característica singular do ADN lusitano. Não sei, é complicado racionalizar o conceito de rancho folclórico.
Os ranchos, constituídos por bem mais de dez elementos, sobem ao palco e executam danças a que dão nomes como “chula”, “fandango”, “malhão”, “bailinho” ou “corridinho”, entre outros igualmente castiços e pitorescos, ora terminados em “ão” ou em “inho”. Os pares de dançarinos executam uma coreografia que consiste sobretudo em correr à volta do estrado num movimento elíptico, intervalado de pulos com os braços no ar, enquanto os dedos dão estalinhos silenciosos. Às vezes fico com a sensação de que estão a caminhar sobre brasas, tal é o corropio. Fazem isto ao ritmo de um som estridente produzido na rectaguarda por uma banda, onde se destaca o acordeão, tocado sempre numa escala muito acima dos restantes instrumentos. Ao mesmo tempo há um ou mais membros do grupo que produz uns urros a que chama “cantar”, com uma letra imperceptível. Há casos onde ainda se percebe o que dizem, apesar de não fazer qualquer sentido, mas quando são as mulheres encarregadas da parte vocal, o ruído é potente ao extremo de ameaçar a integridade de peças de cristal e outros objectos frágeis num raio de muitos metros.
Em Macau existe um rancho bem conhecido que chegou a actuar na pré-abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, em representação da “identidade portuguesa de Macau”, uma das muitas regiões da grande China. O grupo de dançares local não se equipara a muitos de Portugal em matéria de extravagância, e chega a ser até suportável, o que talvez seja um mau sinal para os entendidos, e mais uma vez, sou um leigo neste assunto. Vi ontem num programa da RTPi um grupo de quatro moças giraças vestidas de minhotas que cantavam até relativamente bem e dizem “fazer música de raíz tradicional virada para a modernidade”. Ora, nesse caso não têm nada a ver com os tais ranchos, ainda considerados “de raíz tradicional portuguesa”. A modernidade é a antítese dos ranchos folclóricos.
Se os ranchos são parte de uma “identidade”, então prefiro que essa “identidade” seja deixada ao critério de cada um. Eu não me identifico com aquilo, e se é uma das poucas coisas que temos para mostrar com a etiqueta de “cultura”, então mais vale ficarmos quietinhos. Julgo mesmo que o KGB e a Stasi da Alemanha de Leste usaram os ranchos como método de tortura. Quem tanto critica a música “pimba” e considera essa a expressão mais reles da nossa oferta musical, ainda não deve ter visto um rancho folclórico. Uma experiência que não recomendo a ninguém.
1 comentário:
Aqui «Rancho» não tem a ver com Quintas ou outras instalações agrícolas, mas sim com grupo: um Rancho é um grupo de pessoas, termo que advém dos «ranchos-grupos» que se formavam para fazer a ceifa e outras actividades agrícolas que requeriam trabalho de grupo.
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