Dentro do segredo - uma viagem na Coreia do Norte

Acabei de ler o livro “Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte”, do português José Luís Peixoto, doravante referido pelas iniciais JLP. A obra, que desde já recomendo, lê-se bastante bem, e para mim foi tarefa que demorou dia e meio, mesmo durante a semana de trabalho. Já conhecia o autor da sua obra “Livro”, e não surpreende que tenha já uma bilbiografia respeitável, e traduzida para várias línguas. O que torna o livro interessante é a aproximação directa que o autor faz ao tema que aborda: a sua viagem à Coreia do Norte. Não concordo com algumas das reflexões pessoais que faz à margem da descrição dos locais e eventos da sua jornada, mas esta é uma experiência passível de ter um impacto variável, dependeno das expectativas. O mérito está sobretudo na observação cuidada que JLP faz do país do mais isolado do mundo e do modo de vida que lhe foi dado a conhecer, mesmo dentro das limitações que são impostas a todos os outros visitantes estrangeiros.

Esta obra tem o mérito de ser a primeira dissertação escrita sobre a Coreia do Norte em língua portuguesa digna desse nome. Existem outras obras estrangeiras, e alguns documentários que chegam a ter imagens recolhidas no local, apesar das limitações impostas pelo regime norte-coreano no que toca à filmagem e fotografia. A coragem de JLP é também de louvar, e não será de ânimo leve que alguém se dispõe a ir de férias a um local onde tem que deixar passaporte e telemóvel à entrada. Para piorar a situação, JLP visitou o país pouco depois da morte do líder Kim Jong-Il, facto que o fez pensar duas vezes sobre os verdadeiros riscos desta aventura. Por outro lado a viagem realizada no mês de Abril do ano passado permitiu-lhe assistir às comemorações do centenário do nascimento de Kim Il-Sung, fundador da República Democrática da Coreia, e presidente eterno. No final o autor deu o corpo ao manifesto, e dá-nos a conhecer um pouco mais do país que desafia todas as convenções sociais e políticas vigentes. Um regime que muitos considerariam impensável existir em pleno século XXI.

A Coreia do Norte tem merecido uma atenção especial dos media, investigadores e de muitos curiosos nos últimos 15 ou 20 anos. A queda do regime soviético, o seu maior aliado, transformou a nação num projecto falhado, que depende actualmente da China para que não rebente pelas costuras. Mesmo este apoio é entendido pelo interesse de Pequim em manter na região um estado-tampão que o separe das democracias de inspiração ocidental dominantes na Coreia do Sul e no Japão. Antes dos início dos anos 90, o país era apenas mais um para lá da cortina de ferro. Com a falência do comunismo e o fim da Guerra Fria, deixou de fazer sentido e tornou-se num “case study” interessante.

“Dentro do Segredo”, cuja primeira edição saíu à dois meses, terá certamente um impacto muito maior em Portugal do que entre nós, no sul da China. Aqui sentimos o perigo que um eventual conflito armado na peninsula coreana teria em Macau e na região. Existe uma proximidade que torna impossível ignorar os delírios do regime dos Kim. O regime de Pyongyang tem à distância um fascínio exótico: há alguns anos a Antena 1 levou à Coreia do Norte uma equipa de reportagem que foi pioneira em tentar desvendar o tal “segredo” de que JLP fala. Lembro-me de um episódio interessante dessa reportagem, quando a guia censurou o uso de calças de ganga, que considerava “um símbolo do imperialismo americano”. Foi então que a repórter portuguesa apontou o facto dessa guia estar a usar ela própria calças de ganga de cor branca, e esta insistiu que “não eram calças de ganga”. A quem visita a Coreia do Norte é recomendado que não faça muitas perguntas, e que ignore certas contradições, por mais evidentes que elas sejam.

O autor levou a lição bem estudada. Quem tiver a curiosidade de visitar este país tem que suspender o descrédito durante o tempo que lá passa. Nem vale a pena chamar a atenção para factos que são obviamente maquinações propagandísticas, mentiras ou exageros. A própria dinastia dos Kim, avô, pai e agora o neto, são considerados símbolos intocáveis, e JLP conta como se endina a dobrar um jornal onde aparece a imagem de um deles sem dobrar a sua idolatrada figura, o que seria considerado um insulto grave. O que JLP viu é o mesmo que é dado a conhecer a qualquer outro turista. Apesar da ingenuidade os leva a acreditar naquilo que dizem, os guias norte-coreanos têm um cuidado especial em não deixar os estrangeiros longe da vista, e qualquer tentativa de sair do percurso estabelecido é reprimida e censurada. Sobretudo é preciso não esquecer que o passaporte ficou na alfândega, e não existe representação diplomática que valha. Todo o cuidado é pouco.

Quem vai à Coreia do Norte tem sempre qualquer coisa de novo para contar. É um mundo de surpresas. JLP descreve algumas das coisas que lá viu e que lhe terão impressionado mais, como as infra-estruturas sumptuosas contudo disfuncionais, os alimentos fora do prazo, os relatos exagerados dos guias sobre locais e acontecimentos, tantas vezes adornados com elementos do fantástico, e que dificilmente convenciriam uma criança de sete anos. O convívio com a população é restrito, e mesmo esse contacto parece coreografado. O autor deparou com um casamento e até tirou uma fotografia com os noivos, mas do que nem ele próprio se apercebeu é que este casal é o mesmo que tira fotografias com todos os turistas: são “noivos” profissionais. O que se passa realmente na Coreia do Norte e com os seus habitantes só viremos a saber na evantualidade do regime cair um dia. Em suma, ninguém conhece ao certo esta realidade. Nem mesmo os dissidentes; nem estes sabem a metade do que ali se passa.

Uma particularidade que sobressai e que JLP documenta é o da paragem do tempo. Algumas das funcionalidades do país são datadas dos anos 70 e do início dos anos 80. Na verdade este foi um período em que muitos ainda acreditavam no eventual sucesso do Juche, a tal teoria da auto-suficiência protelada por Kim Il-Sung. Prova disso é o tal centro de estudos do Kimilsungismo, em Portugal, activo durante os anos 80 e entretanto desactivado. Mas o tempo na Coreia do Norte parece ter parado mesmo aí. O regime teve a sapiência de manter o exército do seu lado, a única forma de manter o poder, apesar da fome que tem vitimado o povo desde os meados dos anos 90. Um terço dos homens em idade adulta está alistado, e aparentemente preparado para o combate quando for necessário. Da perspectiva de conforto da nossa vida de ocidentais, é difícil perceber esta motivação, mas a Coreia do Norte é mesmo isso, um mundo à parte.

Os norte-coreanos, e apesar de tudo, estão mesmo convencidos que vivem no melhor país do mundo, e olham para nós com alguma comiseração e distância. É o tal “nacionalismo xenófobo” que JLP refere. O mundo ocidental é o “inimigo”, encabeçado pelos americanos, que são sempre referidos por “assassinos” e “imperialistas”. O autor visitou o Museu das Atrocidades Americanas, dedicado a abusos cometidos pelas tropas norte-americanas durante a guerra da Coreia nos anos 50. Os relatos das tais atrocidades são improbabilidades absurdas, e fazem os bombardeamentos com Napalm durante o conflito no Vietname parecerem distribuição de rebuçados entre as criancinhas. Os japoneses são também demonizados pelo regime norte-coreano, que contudo insiste chamar tratar os vizinhos do sul como “irmãos”. No seu recente discurso de ano novo, Kim Jong-Un apelou à reunificação das Coreias como forma de resolver o conflito. Escusado será dizer que esta reunificação passaria sempre pela predominância do regime do norte sobre o sul. Não parece viável.

Esta foi a estreia de JLP na literatura de viagens, e fê-lo de forma competente, atendendo ao detalhe e evitando dramatizar demasiado a experiência que viveu. É compreensível que os dias lhe tenham custado a passar quando não existe contacto com o mundo exterior, obrigado a observar apenas o que lhe era permitido observar, e quando a única refeição faustosa que consumiu foi cão frito e sopa de cão. Temos apenas que ficar gratos pelo facto de nos ter presenteado com o seu relato, e ler este livro, que é indispensável para que perceba melhor esse mistério que é a Coreia do Norte.