Para quem ainda não leu, fica aqui o
artigo da edição de ontem do Hoje Macau.
Era uma vez uma quinta muito próspera, muito rica e auto-suficiente, que fazia a inveja de todas as quintas da sua região. Esta quinta era propriedade de um sr. Silva, um homem solitário e cruel, mas os seus animais residentes sonhavam com a autonomia, com uma quinta “governada pelos seus animais”. Um dia enquanto o sr. Silva bebia na cidade com os amigos, os animais reuniram-se no celeiro para ouvir o velho Major, um sábio porco por todos respeitado, que os incentivou em pegar nas armas e expulsar o malvado Silva. Só assim os animais iam poder usufruir de todas as riquezas que a quinta produzia, e assim ser felizes e dar um futuro melhor às suas crias. Ao proferir as últimas palavras de encorajamento aos animais, o velho Major faleceu, derrubado pelo peso da idade.
Assim que o sr. Silva voltou, inebriado como sempre, os animais, liderados pelos porcos, iniciaram o levantamento contra o tirano, e unidos derrotaram-no, expulsando-o da quinta, oxalá para sempre. Os animais celebraram a liberdade agora conquistada, e começaram a planear o futuro. Na porta do celeiro da quinta foi escrita uma mini-constituição com sete pontos, sendo o mais importante aquele que definia o propósito daquela gloriosa revolução: “Todos os animais são iguais”. O futuro era risonho, e estava finalmente na mão dos animais, e não de um qualquer explorador que os oprimia.
Dos animais que lideraram a revolta contra o sr. Silva, houve dois que se destacaram pelas suas capacidades de liderança: os porcos Chu-pa-pao e Siu-iok-pao. O primeiro era um visionário, e tinha projectos para a quinta, que passavam pelo aumento da produção e o contributo igual de todos para o bem comum. Um projecto ambicioso a que Chu-pa-pao dedicava a maior parte do seu tempo, acreditando na utopia da igualdade entre todos os animais, sem distinção de espécie, tamanho ou função. Siu-iok-pao, por seu lado, era um porco mais astuto, menos inteligente mas com o dom da oratória, um estratega sem escrúpulos, dotado de uma ideologia que receberia a reprovação do velho Major.
Após a revolução Siu-iok-pao adoptou uma ninhada de cachorrinhos que tinham ficado órfãos da mãe, a cadela doméstica do sr. Silva, caída em combate durante a revolução. Rapidamente os cãezinhos cresceram e tornaram-se em mastins ameaçadores, fiéis ao seu pai adoptivo. Siu-iok-pao, matreiro e calculista, chamou para o seu lado outros porcos, e todos conspiraram contra Chu-pa-pao com o objectivo de chamar para eles o poder absoluto sobre a quinta. Chu-pa-pao foi morto pelos mastins após anunciar a construção de um moinho de vento que traria mais riqueza para todos, e os porcos convenceram os outros animais que se tratou de um contra-golpe do sr. Silva e dos seus amigos humanos. Siu-iok-pao foi aclamado como líder natural da quinta.
Os dias passavam e os animais trabalhavam para o bem da quinta, ignorantes da ambição desmedida de Siu-iok-pao e dos restantes porcos. Um dos animais mais produtivos era Ma-chai, um elegante e robusto cavalo, que fazia o trabalho pesado da quinta em nome da consolidação da liberdade conquistada a tanto custo. Trabalhador dedicado e incansável, apoiante incondicional do plano dos porcos, que julgava ir de encontro ao tal bem comum que todos ambicionavam. Os restantes animais, a maioria deles humildes e analfabetos, davam também o seu contributo da melhor forma que podiam. O pessimismo de alguns, como Benjamim, um velho burro sábio, contrastava com o optimismo dos restantes, que confiavam nos seus líderes suínos para levar o projecto da emancipação dos animais a bom porto.
Um dia Siu-iok-pao ordenou a construção do moinho, chamando a si a autoria da ideia de Chu-pa-pao. Mais uma vez os animais não pouparam esforços para cumprir mais esta empreitada, mas num dia de chuva e muito trabalho duro, tragédia, uma pedra cai sobre a perna de Ma-chai, tornando-o impossibilitado de trabalhar. Os porcos prometeram tratar bem do seu elemento mais valioso, que tanto contribuiu para o progresso da quinta, mas A-Mui, a burrita companheira de Ma-chai, viu-o a ser levado para uma fábrica de cola, para seu choque. Fei-chu, um porco poeta, braço direito de Siu-iok-pao e seu porta-voz e propagandista-mor, anunciou aos animais a morte de Ma-chai, que teria dedicado a Siu-iok-pao e ao Governo dos porcos as suas últimas palavras. Os animais desconfiaram, sentiam-se traídos e começavam a duvidar da prosperidade que lhes havia sido prometida. As primeiras a amotinarem-se foram as galinhas, que por causa isso foram executadas, servindo de exemplo para os restantes. O sonho estava desfeito. Tudo não tinha passado de uma ilusão.
Os porcos subverteram os valores da revolução, e contra os mandamentos da quinta começaram a adoptar o modo de vida dos humanos: bebiam álcool, dormiam em camas e usavam roupas, e começaram a andar em dois pés. Esmagavam pela força qualquer tentativa de sublevação, silenciavam opiniões incómodas, e negociavam com os humanos, que antes consideravam inimigos figadais dos animais. O último sacrilégio foi cometido quando alteraram o princípio fundamental da revolução, alterando a directiva mais importante da constituição. Onde se lia apenas “Todos os animais são iguais” lia-se agora a emenda “…mas alguns são mais iguais do que outros”.
Enquanto os porcos consolidavam cada vez mais o seu poder, a vida era cada vez mais difícil para os outros animais. Não só os poleiros e os estábulos eram cada vez mais caros, como os preços dos bens que eles próprios produziam estavam cada vez mais inflacionados, e o ar da quinta cada vez mais poluído, apesar dos cigarros e charutos serem apenas um privilégio dos porcos e seus amigos . Faltavam creches para os vitelos, chibos, borregos, potros e pintainhos, e a economia da quinta estava completamente dependente de uma “porcaria” que tinha sido trazida pelos anteriores donos humanos, e que os porcos tinham sabido usar em seu proveito para enriquecer. O sr. Silva era agora um parceiro de negócios dos porcos.
Ao contrário da alegoria de Orwell, esta é uma narrativa aberta. O último capítulo ainda não está escrito, e cabe aos porcos e aos restantes animais trabalharem juntos para dar a este conto um final feliz, sem ressentimentos, contagem de espingardas e sem uma nova revolução, que é uma coisa que a quinta não precisa. O que a quinta precisa é que os animais voltem a ser todos iguais, e que uns não sejam mais iguais que os outros.
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